por Rita Pereira

Em mais de três décadas de ensino e pesquisa em História Medieval, aprendi nas fontes e textos – e empreendi um esforço monumental para convencer – que inexiste uma cultura medieval. O discurso, ainda hoje presente nos manuais didáticos, de uma cultura una, de caráter teocrático, e que fundamentou a imagem dominante da Idade Média como uma Idade das Trevas, não resiste ao desvelar das múltiplas formas de expressão cultural mais ou menos autônomas em relação aos valores clericais hegemônicos que tomaram corpo na Europa Ocidental.

No caldo heterogêneo de temas, imagens e formas que floresceram no medievo, assim como os romans (grandes poemas em versos, escritos em línguas românicas para serem lidos em voz alta), destacam-se, no complexo conjunto do que se convencionou chamar de cultura de corte, os poemas destinados ao canto.

A arte do poemar tinha como pressuposto a associação entre rima e ritmo. As cantigas tiveram grande importância na difusão das línguas vernáculas como línguas literárias de expressão escrita e na disseminação da notação musical.

fonte: https://cantigas.fcsh.unl.pt/manuscrito.asp?cdcant=1309&cdmanu=3473&nordem=1&x=1

Os registros manuscritos vinham comumente ilustrados com iluminuras alusivas ao tema e indicativas de instrumentos e danças que deveriam acompanhar a execução. É marcante, nessas imagens que acompanham os poemas, a presença de mulheres instrumentistas e dançarinas.

Embora se admita que, nos meios aristocráticos, existiam mulheres trovadoras, a maioria das cantigas de amor e de amigo foi concebida por homens. Escritos em primeira pessoa, os cantares de amor expressavam a vassalagem amorosa do nobre-cavaleiro em relação à dama e colocavam em relevo a “coita de amor”, o sofrimento extremo, até o ponto do desejo de morte, prova maior de amor por aquela a quem o trovador se dirige como “mia senhor”.

Na cantiga de amor a seguir, atribuída a D. Dinis, rei de Portugal, o trovador cuida de dizer que, por amor e temor de não ser amado, fingiu gostar de outra; agora, se confessa merecedor de todo sofrimento e desprezo e deseja, mesmo, ser morto por sua dama, o que lhe daria grande prazer.

O que nunca vos cuidei a dizer, de D. Dinis, com Paulina Ceremużyńska

As cantigas de amor expressam, a partir do eu lírico masculino, a devoção ao amor, superior ao próprio ser amado, e projetam, pedagogicamente, um modelo de atuação – amparado nas virtudes da coragem, da fidelidade, da fé e da largueza de propósitos – para os rapazes da nobreza-cavalaria, que tinham no casamento um caminho seguro para a ascensão social. Em última instância, as cantigas de amor servem à valoração positiva do homem, que se faz merecedor do amor da dama, muito mais do que da dama a quem ele dirige a sua intenção.

As cantigas de amigo perseguem propósitos semelhantes. Em sua maioria compostas por homens, elas anunciam, a partir do eu lírico feminino, o sofrimento pela ausência do cavaleiro e o desejo do reencontro. E exaltam a qualidade do cavaleiro a quem devotam seu amor. Ao nomeá-lo como “amigo”, a mulher indica um grau de compromisso e intimidade em relação ao amado, situação que ela faz revelar às amigas, irmãs, ou mesmo à mãe.

Na canção a seguir, atribuída a Pero Gonçales de Portocarrero, a moça lamenta o sofrimento em que vive por não saber notícias de seu amigo, se é vivo ou morto ou se ficara detido no reino de Castela por ordem do rei. Ela alude aos presentes (doas) que ele lhe dera em sinal de compromisso, como os fios de seda (sirgo) e as toucas da região de Navarra (toucas de Estela), apetrechos cujo uso era apropriado às mulheres casadas, pois somente às donzelas era permitido manter os cabelos soltos. Na lista dos presentes, ela faz referência, ainda, a um espelho, no qual ela admite que não mais irá se olhar embora se reconheça bonita, e um cinto com fivelas que, assim como os demais presentes, ela não mais usará.

Por Deus coitada vivo, de D. Pero Gonçales de Portocarrero

Um outro tema muito comum às cantigas de amigo é o do reencontro. Na cantiga a seguir, atribuída a Martin Codax, a moça anuncia à mãe (madre) que irá à beira do mar de Vigo para encontrar o seu amigo, que regressa são e vivo e, além disso, agraciado entre os privados do rei.

Mandad’hei comigo
ca vem meu amigo,
e irei, madr’, a Vigo.
  
Comig’hei mandado
ca vem meu amado,
e irei, madr’, a Vigo.
  
Ca vem meu amigo
e vem san’e vivo,
e irei, madr’, a Vigo.
  
Ca vem meu amado
e vem viv’e sano,
e irei, madr’, a Vigo.
  
Ca vem san’e vivo
e d’el-rei amigo,
e irei, madr’, a Vigo.
  
Ca vem vivo e sano
e d’el-rei privado,
e irei, madr’, a Vigo.

Mandad’ei comigo, de Martin Codax, por Ensemble Oni Wytars

Essas formas literárias, produzidas inicialmente sob o patrocínio da nobreza de corte e, a princípio, para o seu próprio consumo, permitem a coexistência de modelos culturais diversos e, ao longo dos séculos, se inserem em um amplo processo de circularidade cultural, de ressignificação e de transformações associadas ao trânsito, em vias de mão dupla, entre o oral e o escrito.

Os temas, as formas e imagens do medievo ganharam espaço destacado na produção cultural do nordeste brasileiro, nomeadamente por meio da difusão de folhetos e da atuação de cantadores. Essas formas do escrito e do oral, às quais vieram somar-se um amplo repertório de leituras, foram apropriadas, de forma peculiar, por um dos mais importantes compositores brasileiros contemporâneos, Elomar Figueira Mello.

Na sua produção poético-musical, Elomar transita entre as representações do sertão, espaço histórico-geográfico e cultural que lhe serve de habitação e referência, e um universo pontilhado por castelos, reis e princesas, no qual ele procura modelos de comportamento heroico e de expressão amorosa. Essa circunstância peculiar faz prevalecer a ideia de que a obra de Elomar estaria assentada sobre as heranças de uma suposta cultura medieval e, em particular, sobre formas e valores da Idade Média Ibérica.

Mas as relações entre o conteúdo e a forma da poesia elomariana com as formas poéticas originadas no Ocidente Europeu durante a Idade Média não está isenta de problemas. Paul Zumthor alerta para uma dupla tentação a nos espreitar: “conceber [os séculos da Idade Média] como uma origem no fio reto e orgânico do que nos tornamos; e supor para eles, por isso mesmo (insidiosamente) uma unidade que não tiveram”.

Das formas poéticas identificadas com o amor chamado cortês, Elomar se apropria da elegia ao amor, e, sobretudo, do modelo de cavaleiro, plenamente consciente da efemeridade dos prazeres terrenais, como se pode ouvir na sua Seresta Sertaneza, poema no qual a donzela ocupa um papel absolutamente secundário:

Nos raios de luz de um beijo puro
me estremeço e eis-me a navegar
por cerúleas regiões
onde ao avaro e ao impuro
não é dado entrar.

Tresloucado cavaleiro andante
a vasculhar espaços
de extintos céus
num confronto derradeiro
venci Prometeu, anjo do mal
o mais cruel
acusador de meus irmãos.

Nestes mundos dissipados
magas entidades dotam o corpo meu
de poderes encantados
mágicos sentidos na razão dos céus

Pois fundir o espaço e o tempo
vencer as tentações rasteiras
do instinto animal
só é dado a quem vê no amor
o único portal

Através de infindas sendas
vias estelares um cordel de luz
trago atado ao umbigo ainda
pois não transmudei-me
ao reino dos cristais

Apois Deus acorrentou os sábios
na prisão escura das três dimensões
e escravizados desde então
a serviço dos maus vivem a mentir
vivem a enganar
a iludir os corações

Visitante das estrelas hóspede celeste
visões ancestrais me torturam
pois ao tê-las quebra o encanto
e torno ao mundo de meus pais
à minha origem planetária
enfrentar a mansão da morte do pranto e da dor

Donzela fecha esta janela
e não me tentes mais.

Em Deserança, à maneira dos trovadores, canta a dor e tristeza do amor perdido. A “coita de amor” pela amada é cantada em tiranas como o “pretérito mais que perfeito”:

Já não sei mais o que é fazer as contas
até já perdi as contas
dos cantos dos rios das contas
que meu peito amor, cantou
Perdido de amor por ti
já nem me lembro quantas cantigas
quantas tiranas amiga
na viola padeci
Também não sei mais quantos foram
os luares que passaram
pelo vão dessa janela
indagando suplicantes
frios, pálidos, dementes,
onde anda a amiga aquela
Viestes de longe era tão linda
como se hoje lembro ainda
A mansitude da manhã
foi tua vinda amiga vã
Dói-me no peito a relembrar
Já não tem jeito a vida é vã
Qui diserança ó minha irmã
Mas apesar de tudo desfeito
De tanto sonho morto
qui não tem mais jeito
Tombando a ladeira já pela descida
na tarde da vida rompo satisfeito
Foste na jornada a jornada perdida
meu amor pretérito mais que perfeito.

Nestas duas cantigas, compostas na perspectiva do eu lírico masculino, vemos reproduzirem-se os valores fundamentais dos cantares de amor do trovadorismo medieval, sobretudo a devoção ao amor e o auto elogio ao poeta, que desdobra-se em palavras, expressas em norma culta, para traduzir a sua experiência amorosa vivenciada à distância.

Mas Elomar também compõe, no que ele nomeou como linguagem dialetal sertaneza, cantares de amor ambientados no espaço cultural do sertão. Na ópera Faviela, o personagem Aparício expressa a sua coita de amor pela personagem que dá título à obra, com quem ele havia firmado compromisso e trocado juras de amor. Mas, em diálogo com a madrinha da moça, se dá conta que a sua amada havia fugido com um caminhante e joga sobre ela toda a sorte de ofensas:

Mĩa’ alma duvĩa
Que hai arte do mal
Mĩa’ alma difĩa
Margosa de fel
Só faiz sete lũa
Qui li di o anel
Jurô que era mĩa
Pru tinta e papel

Foi no minguante dessa passada
Tão de repente deu-se o sucesso
Qui já nem guento mais essa dô
Vino dos cunfim da istrada
Um misterioso aqui posô
Se arribô de madrugada
E Faviela levô!

Tão linda tão bela
Priciosa donzela
Malvada malunga
Culpada foi ela
Jurô que era mĩa
Pru tinta e papel
Foi imbora a ruĩa
Ingrata e infiel.

Também na sua Incelença pro amor ritirante, Elomar canta um canto de dor em lembrança da amada que, na esperança de uma vida melhor, “ritira pelos caminho do vai num volta”. Em um intrincado conjunto de imagens, o poeta reafirma a presença da amada nas lembranças de jura do amor, no cantar de grilos, nos gemidos dos rebanhos, narra as tentativas, sem sucesso, de obter notícias, e finda com um pedido de clemência, expresso em um canto de incelença para o amor que “ritirou”:

Vem amiga visitar
A terra o lugar
Que você abandonou
Inda ouço murmurar
Nunca vou te deixar
Por Deus nosso senhor
Pena cumpanheira agora
Que você foi embora
A vida fulorô.

Ouço em toda noite escura
Como eu a sua procura
Um grilo a cantar
Lá no fundo do terreiro
Um grilo violeiro
Inhambado a procurar
Mas já pela madrugada
Ouço o canto da amada
Do grilo cantador.

Geme os rebanhos na aurora
Mugindo cadê a senhora
Que nunca mais voltou
Ao senhor peço clemênça
Num canto de incelença
Pro amor que retirou.

Faz um ano in janeiro
Que aqui pousou um tropeiro
O cujo prometeu
De na derradeira lua
Trazer notícia sua
se vive ou se morreu
Derna aquela madrugada
Tenho os olhos na istrada
E a tropa não voltou;

Ao Senhor peço clemênca
Num canto de incelença
Pru amor que ritirou

Seja em língua padrão, seja em linguagem dialetal, Elomar compõe, com maestria, cantares de amor, conformado em louvores ao próprio ato de amar. O poeta almeja a visão do ser amado, as provas de sua existência, mas expressa, também, a deserança dos amores desfeitos por ação daquela a quem dedica o seu penar.

Os temas, as formas e abordagens das cantigas de amor que integram a produção de Elomar se prestam à afirmação de um modelo de comportamento masculino que projeta o poeta como merecedor das graças daquela em favor da qual ele empenha a sua palavra. Esta perspectiva aparece mais claramente em O rapto de Joana do Tarugo, cantiga na qual o poeta comunga a narrativa dos próprios feitos com a evocação da presença da donzela para a consumação do amor por meio de um rapto:

Enfrentei fossos muralhas
e os ferros dos portais
só pela graça da gentil senhora
filtrando a vida pelos grãos
de ampulhetas mortais
D’além de Trás-os-Montes venho
por campos de justas
honrando este amor
me expondo à sanha sanguinária
de cortes cruéis

Enfrentei vilões no Algouço
e em Senhores de Biscaia
fidalgos corpos de armas brunidas
Não temo escorpiões cruéis, carrascos, vosso pai
Enfreado à porta do castelo
tenho meu murzelo ligeiro e alazão
que em lidas sangrentas bateu
mil mouros infiéis

Ó senhora dos Sarsais
minh’alma só teme o Rei dos Reis
deixa a alcova vem-me à janela
Ó senhora dos Sarsais
Só por vosso amor e nada mais
Desça da torre, Naíla Donzela

Venho de um reino distante
errante e menestrel
Ainda esta noite eu tenho esta donzela
Minha espada empenho a uma deã
mais pura das vestais
Aviai pois a viagem é longa
e já vim preparado para vos levar
Já tarda e quase que o minguante
está a morrer nos céus

Ó senhora dos Sarsais
minh’alma só teme o Rei dos Reis
Deixa a alcova vem-me à janela
Ó senhora dos Sarsais
Só por vosso amor e nada mais
Desça da torre Naíla Donzela
Joana tão bela

No cancioneiro elomariano, mesmo aquela que se intitula uma Cantiga de Amigo é, em verdade, uma canção de amor. Ao contrário das cantigas de amigo medievais, expressas a partir do eu lírico feminino, aqui é o homem que canta a partida da amiga/mulher. Expressões tomadas das cantigas ibéricas, como amiga e madre, se fundem a informações sobre lugares (como a Casa dos Carneiros, nome da fazenda de propriedade de Elomar), hábitos e imagens idealizados do universo elomariano (como as rodas de violeiros à luz de candeeiros para cantar o amor).

Lá na Casa dos Carneiros
onde os violeiros vão cantar louvando você
em cantigas de amigo
cantando comigo somente porque você é
minha amiga mulher
lua nova do céu que já não me quer

Dezessete é minha conta
vem amiga e conta uma coisa linda pra mim
Conta os fios dos seus cabelos
sonhos em anelos
Conta-me se o amor não tem fim
Madre amiga é ruim
me mentiu jurando amor que não tem fim

Lá na casa dos carneiros
sete candeeiros iluminam a sala de amor
sete violas em clamores, sete cantadores
são sete tiranas de amor
para amiga em flor
que partiu e até hoje não voltou

Dezessete é minha conta
vem amiga e conta uma coisa linda pra mim
pois na casa dos carneiros
violas e violeiros só vivem clamando assim
madre amiga é ruim
me mentiu jurando amor que não tem fim.

Muito distantes se encontram as poesias elomarianas das cantigas de amigo medievais, que, com seus paralelismos, sua simplicidade de motivos e de recursos sensitivos, entoam, a partir do eu lírico feminino, a saudade do amigo distante e a naturalidade do amor carnal, que haveria de realizar-se com o regresso do ser amado.

Muito para trás ficou a realidade que permitiu a concepção e difusão das cantigas de amor e de amigo e dos romances de cavalaria como formas privilegiadas de cultura de corte. Para trás ficaram os castelos, centros de poder e de autodefesa, que, privilegiadamente, lhes serviam de audiência e lhes patrocinavam a escrita. Já não há donzelas encerradas em suas alcovas. Não mais existem nobres, cavaleiros, heróis a serem louvados por seus feitos, pois já não existem reinos e reis por quem combater. Ao passado pertencem os poetas da nobreza ou a ela subordinados que, por meio de suas cantigas, lograram delimitar e expor determinados conceitos de virtude, afirmar a excepcionalidade da condição cavaleiresca e o privilégio do pertencimento à ordem nobiliárquica. Mas Elomar não depende desse cenário para fazer ecoar temas e fórmulas literárias da Idade Média. Os personagens aos quais ele concede o poder de falar sobre o amor, às vezes projetados em uma narrativa atemporal ou anacrônica, às vezes assentados em um tempo e espaço facilmente reconhecível no presente, prestam-se à construção e exaltação de um modelo heroico que personifica a imagem de si do poeta.

A escolha de formas medievais de expressão cultural por Elomar não se restringe à eleição de temas e imagens. A presença da voz e do ritmo como fatores constitutivos da sua poesia é também um indicativo da sua proximidade afetiva com a tradição do trovadorismo. Poeta-músico, agraciado com o dom do poemar, ele faz associar a melodia à poesia. Mas é preciso considerar, por outro lado, a pressão dos padrões contemporâneos de composição. Elomar supera as canções monofônicas, os aspectos melódicos e rítmicos das cantigas medievais – destinadas à execução musical, reforçada pelo recurso da arte dramática e da dança – em favor da relativa liberdade no uso da métrica e dos recursos da polifonia. Nas suas construções poéticas, um aparente paralelismo é contraditado por mudanças sutis na sequência das estrofes. Com uma precisão matemática, ele explora as técnicas contemporâneas da polifonia e as múltiplas possibilidades de composição ofertadas pelo sistema tonal.

As escolhas feitas por Elomar, no meio do imenso capital de formas disponíveis, está em consonância com sua visão peculiar sobre a cultura e identidade nacional e explica-se pela associação, assente nos seus discursos e na sua poesia, entre os conceitos de história, tradição e verdade. Mas isso é outro assunto ao qual voltaremos a falar em outro momento.