A partir da década de 1950, o tema de Mulher Rendeira foi gravado e regravado inúmeras vezes, por diversos intérpretes e com textos variados. Mais do que isso, esse, como outros temas que foram incorporadas ao que se convencionou chamar de Cancioneiro de Lampião, encontrou espaço, além dos ambientes da música popular, nas universidades e inspirou a produção de peças musicais no ambiente acadêmico. Em 1953, ano em que foi lançado o filme O Cangaceiro, o compositor Osvaldo Lacerda escreveu 12 Variações sobre Mulher Rendeira para piano. Nesta obra, o famoso tema é apresentado inicialmente com letra e melodia sem grandes alterações em relação à tradição que viria a ser consagrada no filme de Lima Barreto e na gravação de Volta Seca (1957), com a peculiaridade de que a letra é incorporada à partitura como um registro de memória, sem indicativo de execução vocal. Em seguida, o compositor propõe a execução de 12 maneiras diferentes, com “variações” no ritmo, na harmonia, no caráter etc. A cada variação, Osvaldo Lacerda se distancia, gradualmente, do material original, a ponto de torná-lo irreconhecível, até que, no final, retoma a melodia de forma mais clara, em uma espécie de retorno às origens. A presença de temas da cultura popular na música de academia remonta à tradição nacionalista inaugurada por Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que dedicou parte de sua obra à valorização do acervo de canções folclóricas e populares de diferentes regiões do Brasil. Villa Lobos apostava na formação cultural e da educação musical das crianças e jovens ao colocá-los em contato com canções que já conheciam. A transposição de temas e formas do cancioneiro popular para o sistema de escrita musical, tendo por objetivo a execução principalmente por meio do canto coral, foi defendida por Villa Lobos como estratégia de difusão do sentimento nacional. Foi nesta perspectiva que a academia abraçou Mulher Rendeira, que recebeu versões para diversas disposições de instrumentos e vozes. Embora Volta Seca e outros reivindicassem a autoria da canção, na segunda metade do século XX ela já se encontrava incorporada ao repertório popular de diversas regiões do país. A ela foram incorporadas novos versos, mas a letra e a melodia do refrão – “Olê mulher rendeira / olê mulher rendá / tu me ensina a fazer renda / que eu te ensino a namorá” – eram quase unanimidade e se ofertavam como um rico material a ser trabalhado por compositores e educadores. Apesar da existência de adaptações instrumentais e orquestrais, sem dúvida o maior destaque de Mulher Rendeira decorre dos arranjos para a música coral. Dentre as versões destinadas ao canto, vale mencionar o cânone para quatro vozes do músico catarinense Edino Krieger, que se concentra, basicamente, sobre o refrão: Merece destaque, sobretudo, o arranjo de Muié Rendêra, produzido no ano de 1963 pelo maestro belorizontino Carlos Alberto Pinto Fonseca para o Coral da União Estadual dos Estudantes (UEE). O coro viria a ser incorporado pela Universidade Federal de Minas Gerais e repaginado como Ars Nova – Coral da UFMG. No arranjo de Carlos Alberto Pinto Fonseca, Mulher Rendeira aparece combinado com um outro tema, atribuído a Manezinho Araújo: “É Lampa, é Lampa, é Lampa / é Lampa, é Lampa, é Lampião / seu nome é Virgulino / apelido é Lampião”. Durante os mais de 40 anos em que esteve sob a condução do maestro, o Ars Nova conquistou reconhecimento nacional e internacional, realizando apresentações em todo o Brasil, além de países das Américas, da Europa e da Ásia. Por força dessa projeção, Muié Rendêra se tornou um arranjo mundialmente conhecido e hoje é parte consagrada do repertório coral brasileiro. A pesquisa por “muié rendera pinto fonseca” no Youtube encontra mais de 3 mil resultados e inclui performances de coros de diferentes países sobre o arranjo do maestro do Ars Nova. Ainda sobre a presença de Lampião na música acadêmica, é importante salientar uma peça de 1980, escrita pelo compositor pernambucano Marlos Nobre: a suíte em três movimentos intitulada Cancioneiro de Lampião. Nessa obra, o tema de Mulher Rendeira é apresentado no primeiro movimento. No segundo, o tema É Lampa, é Lampa, é Lampa aparece como refrão, intercalado com os seguintes versos: A muié de Lampião Os primeiros versos indicam a valoração positiva da figura de Lampião, cuja mulher, agraciada com meia, sapato e lenço de seda, “não anda de pé no chão”. A segunda estrofe normaliza o desejo dos jovens do sertão de, como fez Volta Seca, se juntar ao bando de Lampião para lutar com ele e viver a “mió vida do mundo”. De forma complementar, o último movimento da peça traz um texto curioso e não muito comum nas gravações de Mulher Rendeira que se popularizaram: Lampião desceu a serra Com referência explícita a José Lucena, a estrofe recupera a tradição ibérica das cantigas de escárnio e maldizer e projeta em Lampião o modelo do herói popular que, à margem de padrões morais sustentados pela ordem vigente, consagra-se pela humilhação pública dos representantes dos poderes constituídos. José Lucena era um dos mais antigos e conhecidos inimigos de Lampião; era sargento da Polícia de Alagoas quando liderou a volante que resultou na morte de Zé Ferreira, pai do rei do cangaço, em 1921, em Mata Grande, oeste de Alagoas, divisa com Pernambuco. Zé Lucena fez carreira na Polícia do Estado de Alagoas, chegando à patente de Major, tendo liderado várias ações de combate aos cangaceiros, e foi várias vezes mencionado por Lampião, ao lado do fazendeiro José Saturnino, como responsável direto pela morte do pai e, assim, indiretamente, responsável também pela sua conversão, de Virgulino, filho de Zé Ferreira, em Lampião, rei do cangaço. A integração de Maria Bonita ao grupo de Lampião, inicialmente como “Maria do Capitão”, ocorreu apenas entre 1930-1931 e, a partir daí, as anedotas envolvendo a figura de Lampião como raptor e deflorador de mulheres se tornaram mais escassas, mas continuaram a afirmar o cangaceiro como vingador insultuoso contra homens ricos e poderosos.
não anda de pé no chão
anda de meia e sapato
lenço de seda na mão
Minha mãe me dê dinheiro
pra comprá um cinturão
pra enchê de cartucheira
pra brigá mais Lampião
que a mió vida do mundo
é andar mais Lampião”
deu um baque na cancela
a mulher de Zé Lucena
Lampião carregou ela
por Guilherme Pereira de Magalhães
Alday Souza
Maravilhoso.
MARA REGINA DE MAGALHAES
Belíssimo
Selma Matos
Muito curiosa a historia dessa música! Escutei e admirei as variadas versões apresentadas aqui, mas fiquei encantada com MUIÉ RENDERA!!!
Parabéns pelo texto Guilherme Magalhães!
CARLOS AUGUSTO FERNANDES DO NASCIMENTO
Muito enriquecedor e muito importante para a recuperação e manutenção de nossa memória cultural. Fantástica a escolha das interpretações das músicas. Me recordo do arranjo de Wagner Tiso, com Egberto Gismonti e Nico Assumpção no disco Profissão Músico, onde o tema também viaja, se perde em outras melodias muitas e retorna a sua origem em suaves tangências.
Marcos Ferreira
Guilherme, parabéns pela pesquisa e pelo rico texto. Fundamental para quem se aventurar na interpretação do tema de lampião. Bravo!!!
Silvia Cristina Arantes de Souza
Parabéns Guilherme, pela pesquisa! Amei conhecer as variações e interpretações de uma música que me impressiona desde a infância!
Lu DiMattos
Parabéns Guilherme pela pesquisa e riqueza de seu texto e nos apresentar as variações de “Muié Rendera”. Muito bom mesmo. 👏🏽👏🏽👏🏽