Sentidos do Romance na Bahia e no Nordeste

Quando cheguei à Bahia, levei um tempo para entender os sentidos que a palavra “romance” assume por aqui. Naquela época, eu nunca tinha viajado de avião. Aeroporto não era para filho de trabalhador gráfico e de mãe dona de casa. E nem para professor de História. Chegar numa cidade baiana era chegar de ônibus, na estação rodoviária. E toda rodoviária tinha uma mistura de banca de revista e livraria. Na Bahia, algumas rodoviárias continham uma boa coleção de literatura de cordel para venda. Tinha. Hoje praticamente não tem mais. Nem as bancas, muito menos os folhetos de cordel.

Na época reparei, mas não atinei direito para o motivo, que vários exemplares de cordel tinham títulos que começavam por “Romance”. Um exemplo é o famoso Romance do Pavão Misterioso, de autoria disputada entre os poetas José Camelo de Melo Rezende e João Melquíades Ferreira, um dos romances mais populares do Nordeste, que rendeu diferentes versões e música do cearense Ednardo.

Em minha cabeça de paulista, “romance” remetia a apenas dois conteúdos semânticos: um gênero literário em prosa (os romances de Machado de Assis, os romances de Jorge Amado etc.) e um tipo de relacionamento sentimental marcado pelo afeto e pela paixão amorosa.

Eu poderia ter suprido minhas lacunas informativas me inteirando da produção de estudiosos nordestinos que, desde Silvio Romero, talvez mesmo antes, se dedicaram a analisar e difundir a poesia popular nordestina. Mas, naquela época, eu estava iniciando minha vida acadêmica como professor de História Antiga e terminei priorizando leituras que auxiliavam mais diretamente minha atuação profissional. Tive que privilegiar Jean-Pierre Vernant, Moses Finley, Heródoto, Tucídides, e acabei adiando meu encontro com Câmara Cascudo, Ariano Suassuna e João Cabral de Mello Neto.

Assim, minha relação com os “romances” nordestinos foi sendo construída de forma errante, a partir de bases eminentemente empíricas, e não por informação teórico/conceitual.

Aos poucos, fui percebendo que, aqui no Nordeste, ainda no âmbito da literatura de cordel, o termo “romance” não se fazia presente apenas nos títulos dos folhetos, mas ele remetia também ao próprio conjunto daquelas produções. Falar em “romances” parecia ser o mesmo que falar de “literatura de cordel”. Mais tarde, lendo Suassuna e Bráulio Tavares, descobri que não é bem assim, ou seja, não se trata, na verdade, de termos homólogos ou intercambiáveis. “Cordel” remete ao suporte, ao veículo, ao meio de divulgação e transmissão da informação cultural; ou seja, “cordel” refere-se ao folheto como objeto físico que permite a difusão de um conteúdo. Já “romance” refere-se a este conteúdo que é transmitido pelo suporte “cordel”. Neste sentido, “romance de cordel” pressupõe uma tradição cultural – a dos romances – que é transmitida por meio dos folhetos do cordel.

Mas o cordel pode se prestar a difundir outros conteúdos (foi muito utilizado para promoção de políticos ou ataque a adversários, e até para propaganda de medicamentos), assim como os romances nordestinos podem existir mesmo sem o cordel, declamados em festas populares ou pela voz de cantadores que já foram muito populares por estas terras ou, mais recentemente, transmitidos em arquivos virtuais disponíveis pela internet. Porém, todas estas informações eu somente fui obter/construir depois de muitos anos tentando ser “baiano”.

Morando no município de Vitória da Conquista, me senti na obrigação de conhecer melhor a obra de Elomar Figueira Mello, que, em várias oportunidades, salientou a importância dos romances em sua formação musical. E eu, ainda com minhas viseiras conceituais, achava que Elomar se referia a obras literárias em prosa e a autores “clássicos”.

Mais tarde, Rita me apresentou um compositor de Feira de Santana, chamado Carlos Pita, que tinha um disco fantástico chamado Águas de São Francisco, composto por vários temas musicais que o compositor recolheu entre populações de municípios banhados pelo Rio São Francisco. E lá estava uma canção chamada Romance do Rei do Ensolarar com a Bela das Renda de Lua. E estavam também outras canções que começavam com “História…”: História do Cavaleiro Enluarado com a Donzela do Bem Amar, História do Cavaleiro Sertanejo com a Princesa do Clarear, História do Cavaleiro de Couro e Corda com a Dama dos Rasos de Seca, entre outras “histórias”.

Do contato com esse disco, percebi que “romance”, na Bahia, não tem a ver necessariamente com escrita ou literatura. Romance também pode se apresentar como música. Romance, na verdade, é uma “história”, no sentido de uma narrativa, de um “era uma vez…”.

Outra coisa me ficou evidente a partir do disco de Carlos Pita: o que os nordestinos chamam de romance tem nítida vinculação com a cultura ibérica que chegou ao Brasil pelos imigrantes portugueses e espanhóis. São histórias que, embora ambientadas em ambiente sertanejo, falam de reis, príncipes, princesas, castelos, remetendo a um imaginário cultural de nítida inspiração ibérica e medieval. E é neste sentido que o “romance” torna-se essencial na obra de Elomar.

Esta apreensão do romance como manifestação cultural nordestina alicerçada em tradições de origem ibérica ficou ainda mais evidente quando conheci o trabalho de uma professora de Letras da Universidade Federal da Bahia, Maria del Rosário Suárez Albán. Descendente de espanhóis (da região da Galícia), Maria Albán descobriu, entre mulheres lavadeiras do rio Paraguaçu e entre catadoras de mariscos da região do Conde (litoral norte da Bahia, perto da divisa com Sergipe), romances cantados que remetiam a histórias semelhantes às que ela ouvia de sua avó galega.

A partir desta descoberta, e do trabalho posterior de coleta e análise de material, ela organizou um disco no qual reuniu romances sempre em duas versões: uma versão espanhola/galega, recolhida de seus parentes; outra recolhida junto a baianas e baianos de diferentes municípios, que contavam a mesma história da versão espanhola, mas com variações de detalhes, ênfases etc. O nome do disco é Romances Tradicionais na Galícia e na Bahia, e tem todo no YouTube. Um dos romances do disco se chama Reginaldo, e conta a história da filha de um rei que, rebelde, arma uma trama para passar uma noite de amor com um dos serviçais do pai.

Mais ou menos nesta altura de meu aprendizado empírico sobre a cultura nordestina, percebi outra característica dos “romances”: neles, a história normalmente é contada em diálogos sucessivos, envolvendo diferentes personagens, sem que seja necessária a presença de um narrador e sem que seja indicado quem fala o que e em qual momento. Uma história contada apenas por um narrador é encarada, salvo raras e ilustres exceções, como um romance “pobre”.

No Romance de Reginaldo (que foi recolhido por Maria Albán a partir da recitação de um senhor de 71 anos, de Salvador), há, no começo, uma troca de versos entre a filha do rei e o serviçal:

– Reginaldo, Reginaldo, vassalo do rei querido,
quem me dera Reginaldo, passar uma noite comigo.
– Não zombe de mim, senhora, que sou vosso cativo.
– Não zombo do Reginaldo, é deveras o que digo.

Mais tarde, há uma fala do rei que, depois de procurar e não encontrar Reginaldo em seus aposentos, surpreende os dois amantes, nus e adormecidos, no quarto da Infanta (chamada de “Infância”): “- Fui no quarto de Dona Infância, encontrei os dois deitados, / todos dois agarradinhos como se fossem dois casados”.

O rei, hesitante em matar o serviçal e deixar desonrada a filha, sai do quarto, mas deixa sua espada no leito dos amantes, para que soubessem que ele estava ciente do ocorrido.

O diálogo final é irônico, pois mostra uma reviravolta da situação dos amantes que compunham aquele casal. No começo do romance, a iniciativa é toda da mulher, que traz o homem, que se mantinha numa posição de humildade (“sou vosso cativo”), para sua cama. Mas quando Reginaldo percebe que, mesmo surpreendido pelo rei, continua vivo, conclui que poderá tomar uma posição de mando na relação com a princesa. Então, os termos do relacionamento entre Reginaldo e a filha do rei mudam completamente:

– Acorda Reginaldo, que nós estamos perdidos,
espada de rei meu pai entre nós está metida.
– Cala boca, Dona Infância, deixa de tanto chorar,
que dentro deste palácio tem que ter príncipe real.

A Universidade de Washington (UW) mantém um acervo extraordinário de romances de origem ibérica, recolhidos desde o século XVI em diferentes partes do mundo, que pode ser acessado, sem restrições, de forma on-line. O acervo faz parte de uma ação acadêmica intitulada Pan-Hispanic Ballad Project, que poderíamos traduzir como Projeto Romanceiro Pan-Hispânico, se compreendermos ballad como equivalente ao nosso “romance” (ballad: “a song or poem that tells a story”), e pode ser acessado pelo link https://depts.washington.edu/hisprom/. Este projeto da UW mantém nada menos que 174 versões deste romance de Reginaldo (nas quais o nome do personagem varia entre Gerineldo, Gerinaldo, Girinaldo, Xerinaldo e Reginaldo), recolhidos desde 1537 (quando foi impresso como pliego solto, uma espécie de ancestral ibérico de nosso folheto de cordel) até anos recentes, em diferentes lugares da Espanha, em Portugal, países da América Latina e em comunidades de língua espanhola dos Estados Unidos.

Nem todas as versões concluem com a aceitação pelo rei da transgressão dos amantes e com o anúncio de um matrimonio apaziguador. A versão registrada por Almeida Garret em seu Romanceiro e cancioneiro geral, de meados do século XIX, termina com a execução dos amantes, a continuação da vingança do rei mesmo após a morte e sepultamento do casal e o arrependimento tardio da rainha:

Inda não é de manhã, 
começa a campa a dobrar; 
inda não é meio-dia, 
vão ambos a degolar. 
Ao toque de ave-marias 
foram ambos a enterrar: 

a infanta no altar-mor, 
o outro à porta principal. 
Na cova da bela infanta 
nasce uma árvore real, 
na cova de Girinaldo 
nasceu um lindo rosal.

E com os ramos que deitavam 
foram-se logo abraçar.
El-rei que aquilo viu 
mandou-os logo cortar,
a rainha que tal viu 
caía logo mortal.

– Não me chamem mais rainha, 
Rainha de Portugal,
pois apartei dois amantes 
que Deus queria juntar.

Outro romance interessante do disco Romances tradicionais da Galícia e da Bahia é o da Donzela Guerreira. Trata-se de um tema bem conhecido: o de um homem velho que só teve filhas mulheres e que, diante da guerra e da ordem do rei para que toda família enviasse um varão para o conflito, se vê na iminência de ter de se armar para servir no exército real, mas é substituído por uma de suas filhas, que se disfarça de homem e se faz passar por soldado. É um tema presente em romances da Ibéria, do Nordeste, do sertão (Diadorim que se veste de homem para lutar pelo pai), da Ásia (Mulan) etc.

Nesta versão do romance, há dois diálogos. No primeiro, o velho e a filha que irá substituí-lo na guerra discutem acerca das dificuldades em ocultar a condição feminina da jovem: como disfarçar os seios, o olhar de moça, o andar de mulher?

– Aqui estou eu, meu pai,
faça de mim seu varão.
– Fia, tens os seios grandes,
fia, te conhecerão.
– Meu pai, me dê um colete,
que eles apertarão.
– Fia, tens o olhar de moça,
fia, te conhecerão.
– Meu pai, quando eu ver um rapaz,
enfinco a vista no chão.
– E o teu caminhar de moça,
fia, te conhecerão.
– Meu pai, quando for no caminho,
faço que nem um pilão.

O outro diálogo é ambientado em outro momento do romance, quando a mulher-soldado (que usa o nome de Dom Varão), mesmo disfarçada de homem, provoca desejos em um superior do exército (assim como Diadorim perturba Riobaldo), que vive a suspirar: “o olhar de Dom Varão / é de moça e homem não”.

– Quem me mata, quem me fira,
morro ferido de amor,
o olhar de Dom Varão
é de moça e homem não.

Dom Varão como dispõe,
logo foi a imaginar;
foi passando pelos baixos
e nos altos se assentar;
foi dando a mão ao garfo,
foi logo a destrinchar.

[…]

– Quem me mata, quem me fira,
morro ferido de amor,
o olhar de Dom Varão
é de moça e homem não.

No YouTube, a música aparece com o título trocado com outra faixa do mesmo álbum.

Ariano Suassuna sempre revelou profunda admiração por este romance da donzela guerreira. Em suas performáticas palestras ele procurava uma forma de abordar este tema e recitar trechos que trazia de cor. Abaixo, um pequeno exemplo, no qual a donzela, quando tornada soldado, assume a identidade de “Conde Daros”:

Dorival Caymmi contou certa vez que compôs “História de Pescadores” porque queria fazer, a partir de suas canções anteriores sobre o mar, um “romance”. Na lógica de Caymmi, “O Mar” é uma canção, e não romance, pois é uma narrativa construída na ótica do narrador (“Pedro vivia da pesca / saía no barco / seis horas da tarde / só vinha na hora do sol raiá”), mas “História de Pescadores” é um romance, e não uma canção, pois é uma narrativa construída pela fala dos personagens.

A primeira fala é do pescador se despedindo de sua companheira para ir à pesca:

Minha jangada vai partir pro mar
vou trabalhar, meu bem querer.
Se Deus quiser quando eu voltar do mar,
um peixe bom, eu vou trazer…
Meus companheiros também vão voltar,
e a Deus do céu vamos agradecer!

A segunda fala é da companheira:

Adeus, adeus!
Pescador não se esqueça de mim
vou rezar pra ter bom tempo, meu nego
pra não ter tempo ruim.
Vou fazer sua caminha macia
perfumada de alecrim

As falas seguintes são das mulheres que, na praia, chamam por seus homens que não voltaram da pesca:

Pedro! Pedro! Pedro!
Chico! Chico! Chico!
Lino! Lino! Lino!
Zeca! Zeca! Zeca!
Cadê vocês? Ó mãe de Deus!

Eu bem que disse a José!
Não vá José! Não vá José!
Meu Deus!

Com tempo desses não se sai!
Quem vai pro mar, quem vai pro mar,
não vem!

Depois, vem as falas das pessoas no velório, seguida de um canto de incelença, comum nos rituais fúnebres do Nordeste:

É tão triste ver
partir alguém
que a gente quer
com tanto amor
e suportar
a agonia
de esperar voltar.

Viver olhando o céu e o mar
a incerteza a torturar
a gente fica só…
Tão só a gente fica só
tão só…

É triste esperar

Uma incelênça
Entrou no paraíso
Adeus, irmão, Adeus!
Até o dia de Juízo!

Por fim, o romance conclui com o canto do coro, indicando que, a despeito da tragédia anterior, é necessário repetir o ciclo de aventura, liberdade e tragédia da vida dos pescadores: “Minha jangada vai partir pro mar / vou trabalhar, meu bem querer…”

Antônio Nóbrega tem um disco chamado Lunário Perpétuo, que traz alguns romances curiosíssimos, como o Romance da Nau Catarineta, o Romance da Filha do Imperador do Brasil e o Romance de Riobaldo e Diadorim. Os dois primeiros foram musicados a partir de versões literárias produzidas por Ariano Suassuna (e integradas à narrativa d’ O Romance da Pedra do Reino), que, por sua vez, trabalhou a partir de diferentes versões destes romances que circulam desde o século XVI.

O Romance da Nau Catarineta tem vasta tradição, tanto em Portugal e Espanha como no Brasil. Em Portugal, também integrou a coleção de Almeida Garret, Romanceiro e cancioneiro geral. Em linhas gerais, conta a história de uma nau perdida no oceano, com sua tripulação acossada pela fome e pelo desespero. As referências a seguir são feitas a partir da versão de Almeida Garret, destacando o detalhe que, em Portugal, a “Catarineta” é referida como “Catrineta”:

Lá vem a Nau Catrineta
que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
que iam na volta do mar,
já não tinham que comer,
já não tinham que manjar.

Em outras versões, este tempo de permanência no mar é estendido para “sete anos e um dia”, como na versão gravada por Teca Calazans. Sem divisar outra alternativa para a sobrevivência, a tripulação decide tirar a sorte para escolher um dos homens que deveria ser sacrificado para que sua carne alimentasse os demais. Faz-se o sorteio e o indicado é o próprio capitão do navio.

Deitaram sortes à ventura
qual se havia de matar;
logo foi cair a sorte
no capitão general.

Diante da ameaça, o capitão procura ganhar tempo e ordena a um dos marujos que suba ao mastro principal numa tentativa desesperada de vislumbrar terra firme, de forma a tornar inócua a macabra decisão adotada pela tripulação. Porém, a primeira resposta obtida pelo capitão é apenas o avanço de sete espadas que se preparam para executá-lo:

– Sobe, sobe, marujinho,
àquele mastro real,
vê se vês terras de Espanha,
as praias de Portugal!

– Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal;
vejo sete espadas nuas
que estão para te matar.

O capitão insiste e, afinal, um dos marujos atende à ordem, sobe no “tope real” e, para alívio do comandante, anuncia não apenas indícios de terra firme como também identifica três jovens moças, “debaixo de um laranjal”:

– Acima, acima, gageiro,
acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
areias de Portugal!

– Alvíssaras, capitão,
meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
areias de Portugal!
Mais enxergo, três meninas,
debaixo de um laranjal:
uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
a mais formosa de todas
está no meio a chorar.

Aflito para se livrar das ameaças de execução, o capitão passa a oferecer recompensas ao marujo em troca de mais boas notícias. O marujo, no entanto, vai rejeitando as ofertas do capitão, o que obriga este último a ir aumentando as recompensas – primeiro, uma filha em casamento; depois, dinheiro; em seguida, seu cavalo; por último, o próprio navio:

– Todas três são minhas filhas,
oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
contigo a hei-de casar.
– A vossa filha não quero,
que vos custou a criar.

– Dar-te-ei tanto dinheiro
que o não possas contar.
– Não quero o vosso dinheiro
pois vos custou a ganhar.

– Dou-te o meu cavalo branco,
que nunca houve outro igual.
– Guardai o vosso cavalo,
que vos custou a ensinar.

– Dar-te-ei a Catrineta,
para nela navegar.
– Não quero a Nau Catrineta,
que a não sei governar.

O vício de professor de História me faz apreciar de forma especial esta passagem, pois permite o vislumbre de uma hierarquia de valores e de bens de uma sociedade do passado. No mundo que deu origem a este “romance”, é nítido que o primeiro patrimônio que um homem rico ou nobre poderia abrir mão era as suas filhas; a seguir, uma certa quantidade de dinheiro; depois o seu “cavalo branco”, emblema de nobreza e, por último, seus navios, símbolo de riqueza, autoridade e iniciativa.

Mas, depois de rejeitar todos estes prêmios em troca de boas novas, o que desejava o marujo que subiu ao mastro?

– Que queres tu, meu gageiro,
que alvíssaras te hei-de dar?
– Capitão, quero a tua alma,
para comigo a levar!

Toda a história, portanto, adquire um significado de verificação da fé frente aos desafios e tentações arquitetados pelo diabo; diante de tais tentações, o capitão reage de forma exemplar e, como recompensa, é ele resgatado por anjos que tratam de levar em segurança a Nau Catrineta até o porto mais próximo:

– Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar.

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

No Brasil, o Romance da Nau Catarineta, além da versão literária de Ariano Suassuna, de 1971, está associado a autos e festas religiosas e de marinheiros, conhecidos como fandango ou chegança, e também permanece na memória de romanceiras e romanceiros nordestinos, pessoas capazes de declamar ou cantar, de cor, dezenas de diferentes romances.

Abaixo, dois registros musicais deste romance: o primeiro, de Antônio Nóbrega, como já adiantamos, se atém à versão de Ariano Suassuna; o segundo, de Teca Calazans, se mantém mais próximo da versão reproduzida nos folguedos da Paraíba, em especial pela repetição do vocativo – absolutamente estranho aos ouvidos de um paulista – “ó tolinda”.

Já o Romance da Filha do Imperador do Brasil parece, à primeira audição, uma variante do Romance de Reginaldo, pois igualmente trata da filha de um nobre que trama para ter em sua cama um serviçal do pai. Porém este romance tem uma tradição autônoma nas regiões de influência ibérica. O projeto Romanceiro Pan-Hispânico da Universidade de Washington reúne 62 versões deste romance, normalmente referido como A bastarda e o segador, nas quais a protagonista ora é apresentada como “filha do Imperador de Roma”, ora como “filha do conde da Inglaterra”, filha do “padre Santo de Roma” ou “filha do rei turco de Toledo”.

Em todas as versões, a narrativa se desenvolve em torno de expressões de duplo sentido que designam a atividade do segador/ceifador que deve segar/ceifar uma mata/coivara que é associada à área pubiana da indócil jovem nobre. Na versão brasileira de Ariano Suassuna e Antônio Nóbrega, a tradicional história ibérica se passa numa fazenda e envolve não um serviçal de um rei, mas um “morador”, um “vaqueiro e trabalhador de enxada” de um fazendeiro, que é desafiado pela protagonista a “queimar sua coivara”. Até chegar à “coivara” que deve ser “queimada”, o segador/morador deve descer abaixo dos dois montes, passar pelo tabuleiro, para, enfim, alcançar a “linha da perseguida” ou o “corte da desejada”.

O que me parece mais notável e comovente na tradição dos romances populares no Nordeste não é, propriamente, a sua persistência histórica e nem a sua capacidade de se inserir em diferentes linguagens poéticas – da música, da literatura, do poema declamado e do poema impresso em folhetos de cordel. É sim o fato de esta tradição ter construído laços intensos de sociabilidade, de solidariedade e de emotividade entre homens e mulheres, crianças, adultos e idosos, das camadas populares dos estados nordestinos.

João Cabral de Mello Neto, a quem comecei a admirar, desde a adolescência, em função de seu Morte e Vida Severina compôs um poema autobiográfico chamado Descoberta da literatura, inserido em um livro também autobiográfico, Escola das facas, de 1980.

Filho de um senhor de engenho, nascido em 1920, João Cabral era um homem da elite nordestina, habitante da casa grande. Sua família associava o poder econômico com a desenvoltura nos espaços da cultura erudita. Era irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e teve por primos Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Foi diplomata de carreira brilhante, servindo como cônsul ou embaixador em diversas partes do mundo. E foi ainda o escritor brasileiro que esteve mais próximo de ser indicado para o Nobel de Literatura.

Em Descoberta da literatura, como indica o título, João Cabral expõe os caminhos que o levaram da infância nos engenhos do pai aos ambientes de fruição e produção literária. Nascido e criado em uma casa de tradição intelectual, seria de esperar que descrevesse sua “descoberta da literatura” a partir dos volumes que compunham as bibliotecas das diferentes moradias mantidas pela sua família.

Mas os caminhos que o levaram a se dedicar à literatura tiveram como ponto de partida não os familiares da casa grande, mas a convivência com os trabalhadores do engenho, os “cassacos do eito”, entre os quais não havia um único que fosse capaz de ler e escrever. Nas terras do pai, aquele menino filho de engenho era o único morador alfabetizado com o qual os trabalhadores conseguiam manter uma relação minimamente amigável e de cumplicidade. Esta relação de confiança fez do garoto João Cabral o leitor/declamante de romances que lhes eram trazidos pelos trabalhadores do engenho, somente aos domingos, dia de descanso.

A operação de leitura, no entanto, exigia organização, preparativos e solidariedade entre os moradores do engenho. Em primeiro lugar, obtida de forma não especificada, a informação era transmitida por cochichos, quase numa conspiração: na feira – ou no mercado – chegaram novos romances de cordel. Em seguida, era necessário juntar economias, míseros trocados de cada morador que os tivessem disponíveis, para adquirir o romance. E, por fim, combinar com o menino para que, longe dos olhos da família, “lesse e explicasse” ou, parafraseando, “lesse e interpretasse”, as aventuras impressas no folheto.

O poema segue descrevendo aqueles trabalhadores rurais sentados em volta de um carro de boi, em silêncio absoluto, totalmente absortos na voz daquele menino tão pequeno e magro (“guenzo”) quanto o folheto que tinha nas mãos. E, embora o romance tenha sido apresentado, no início do poema, como “novo”, percebe-se, na sequência, que a narrativa era familiar para aqueles ouvintes, já sabida “de outros folhetos migrantes”.

Não era a suposta novidade do conteúdo dos romances que justificava a reunião, pois a maior parte das pessoas ali presentes já conheciam quase de cor as histórias que compunham o repertório daqueles livretos de barbante. O verdadeiro motivo da reunião era a própria reunião, o prazer de se estar junto, de partilhar uma manhã de domingo com pessoas que já partilhavam as agruras e durezas do trabalho cotidiano em um engenho de cana de açúcar. Naqueles momentos, os trabalhadores do campo pareciam confundir as fronteiras entre a aspereza da vida real e o mundo fantástico de reis, princesas e serviçais dos romances; embaralhavam o “perto com o distante”, o “ali com o espaço mágico”. Talvez até alguns deles se imaginassem como Reginaldo, o serviçal que se deitou com a sinhazinha da casa grande e se tornou senhor, ou se contentassem em, apenas por uma noite, servir de instrumento para os caprichos da filha bastarda do fazendeiro.

Ao final, o poeta denuncia a fria indiferença e aviltamento dos habitantes da casa grande para com aquelas pessoas que recorriam aos romances para se identificarem como algo mais do que simples mão de obra barata para a produção do açúcar e das riquezas da aristocracia agrária nordestina: o menino jamais conseguia terminar a leitura do romance, pois a casa grande tratava de o resgatar daquele ambiente “degradante” de homens brutos, onde lia materiais desprezíveis, próprios da massa ignorante que idolatrava cantadores cegos que não passavam de meliantes.

No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de curumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.)

Concluindo, dirijo um humilde pedido a um leitor imaginário: quando visitar o mercado municipal de um grande cidade nordestina, se, por acaso, passar em frente a uma banca de “romances de barbante”, não se deixe impressionar pela aparência indigente e despojada daqueles folhetos: eles são testemunhos da uma prática cultural que, por inumeráveis gerações, ajudou homens e mulheres a se sentirem unidos não apenas pelo fato de se encontrarem do mesmo lado nas opressivas relações de produção e de poder do Brasil, mas por laços de afetividade, solidariedade e cumplicidade.

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  1. MARA REGINA DE MAGALHAES

    Parabéns Luiz Otávio
    Mais um capítulo tão lindamente finalizado

    • Rita Sampaio

      Adorei Ló! Eu trabalhei com cordel com meus alunos do EJA , as discussões são sempre interessantes.

  2. Selma Matos

    Era uma vez….. um paulista que se enamorou de uma cidade e uma filha da Bahia. Começou a perceber as pequenas coisas do lugar com encanto e admiração. Diz a história que chegou a apreender o Nordeste com mais sensibilidade e erudição do que muitos filhos da terra!

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