Como paulista chegante à Bahia, há mais de 30 anos, tive logo que lidar com as imagens, que muitos do “Sul” conhecem e compartilham, da “terra da preguiça”, do “baiano preguiçoso” etc.
Ainda são imagens recorrentes. Como mantenho contatos com pessoas de diferentes universidades, de diferentes estados, mesmo hoje, quando falo que sou da Bahia, arrisco ouvir algum comentário malicioso sobre a aversão do baiano ao trabalho e de como gostamos, mesmo, é de uma moqueca antes e de uma rede depois. Confesso que tem hora que minha vontade é mandar o sujeito, com uma enxada, trabalhar para sobreviver no semiárido, como fazem muitos baianos do interior, ou então se virar uma semana como carregador nos mercados e feiras da cidade baixa, em Salvador.
É claro que essas imagens da terra da preguiça foram construídas a partir de preconceitos arraigados que separam as elites do Sul-Sudeste e o povo do Nordeste. E teve também um pouco de “fogo amigo”. Acho que Vinicius de Moraes ajudou a consagrar a ideia de que viver na Bahia é ficar de calção de banho, ter o dia para vadiar, se esticar em uma esteira de vime e beber uma água de coco.
Depois de buscar algumas referências, descobri que esta imagem preconceituosa e depreciativa do baiano tem, também, raízes na própria Bahia. Raízes que se vinculam a, no mínimo, dois distintos discursos identitários que, como todo discurso de identidade, trata de “si” ao mesmo tempo que do “outro”.
O primeiro discurso envolve uma tentativa de justificação, construída sobre uma base pura e simplesmente racista, de privilégios sociais e econômicos mediante uma pretendida superioridade moral. A elite branca da Bahia, desde os tempos coloniais, sempre adorou tratar os negros escravizados, justamente os que sustentavam esta elite, como “preguiçosos” e “estúpidos”.
O segundo discurso se desenvolve a partir uma atitude deliberada de alguns baianos do povo (e não da elite) de negação da cultura do trabalho, do relógio e da exploração. Uma destas figuras foi Dorival Caymmi, que se tornou, para muitas pessoas, o estereótipo do baiano preguiçoso e despreocupado. Nada mais injusto. Caymmi foi muito mais do que isto.
Desculpem o didatismo, mas para falar sobre os dois discursos, construídos na própria Bahia, que contribuíram para consolidar a imagem do baiano preguiçoso (o discurso da elite e o do povo), é importante lembrar alguns detalhes da geografia de Salvador.
Como todos sabem, Salvador foi inicialmente moldada pela Baía de Todos os Santos. Nos tempos coloniais, na lógica do colonizador europeu, uma baía como a de Todos os Santos oferecia imensas vantagens, tanto do ponto de vista da defesa do território, como pelo fato de oferecer águas mais calmas, ótimas para construção de portos e atracadouros.
Salvador corresponde à área mais escura do mapa abaixo. A ponta que marca o início da baía é onde está o Farol da Barra. Deste ponto para o oeste, entra-se na baía, começando pela região do Porto da Barra e seguindo pelo Mercado Modelo, Comércio, o grande porto propriamente dito, o atracadouro, a feira de São Joaquim etc.
Em toda esta área, a faixa mais próxima ao litoral era a cidade baixa, o coração da vida econômica e social da velha Salvador. Mas esta faixa litorânea, que fica na parte de dentro da baía, é relativamente estreita; atrás dela, erguem-se encostas e, no alto destas encostas, se fixaram, inicialmente, as construções do poder político (os tribunais, os palácios de governo) e as áreas residenciais da elite (primeiramente no Pelourinho e adjacências; mais tarde, nas regiões do Campo Grande, da Vitória e da Graça), conjunto que compõe a cidade alta.
A maior parte da vida econômica e social de Salvador envolvia as relações entre estas duas áreas. E, muito antes de existir o elevador Lacerda ou os teleféricos/bondinhos, que os baianos chamam de “plano inclinado”, a ligação entre cidade alta e cidade baixa dependia essencialmente das ladeiras.
Uma das mais antigas e importantes ladeiras era a da Preguiça. A Ladeira da Preguiça mereceu até uma música de Gilberto Gil, que foi gravada por Elis Regina (“Essa ladeira / que ladeira é essa? / essa é a Ladeira da Preguiça!”).
Por que a ladeira tinha este nome? Conta-se que quando os trabalhadores, quase todos negros, carregavam as mercadorias ladeira acima, seus patrões ou capatazes espicaçavam os carregadores gritando: “sobe, preguiça!”. Era a típica tentativa da elite de atribuir uma inferioridade moral aos trabalhadores a ela submetidos.
Mas Salvador também tem um território de litoral fora da baía. Quem vai da entrada da baía, no Farol da Barra, para o norte/leste, pega uma região de mar aberto, que começa em Ondina, passa pelo Rio Vermelho, por Amaralina, pela Pituba, vai até Itapoã e, adentrando um pouco em terra firme, chega à Lagoa do Abaeté.
Essa parte do litoral era, originalmente, uma área economicamente muito pobre, ocupada essencialmente por comunidades de pescadores, com poucos contatos com o centro de Salvador. Do Farol da Barra até o Rio Vermelho são 5 km. Hoje pode parecer pouco, mas, no século XIX, era uma distância considerável para se fazer no dia a dia. Até Itapoã, são 25 km e, para o Abaeté, mais 4 km.
As comunidades de pescadores que habitavam essa parte do litoral poderiam ser pobres, mas carregavam a aura da liberdade. O pescador não tinha patrão, definia seu horário e seu ritmo de vida. Normalmente saía para o mar no início da madrugada, voltava no meio da manhã, vendia ou trocava o peixe pescado e tinha a tarde para descansar em sua rede.
Era a realidade possível de vida autônoma em uma sociedade profundamente hierárquica e racista. E foi para estas comunidades que Caymmi dedicou boa parte de seu trabalho poético e musical.
Caymmi veio de uma família humilde, mas com algumas características atípicas para os negros de Salvador do início do século XX. Seu avô por parte de pai era italiano e alfabetizado e tratou de fazer com que seus filhos também aprendessem a ler e escrever. O pai de Dorival, o velho Ioiô, alfabetizado, também transmitiu esta tradição para seus filhos. Além de alfabetizado, Ioiô era um respeitado tocador de violão nas rodas de samba dos negros da cidade baixa.
A relação de Caymmi com a música começa pela afirmação de sua ligação com os orixás. Não por acaso, ele batizou sua primeira filha como o nome de Nana, a orixá ancestral.
“Canto de Obá” é, essencialmente, uma oração dirigida a seu orixá de proteção, Xangô, com os atabaques do candomblé mesclados com violão e com a voz singular de Caymmi.
É também a relação com o candomblé que está na origem de um grande sucesso de Caymmi, uma canção dedicada à sua mãe de santo, que era conhecida pelo apelido de Menininha, filha de Oxum, que mantinha um terreiro em área arrendada de uma família de traficantes belgas, os Gantois.
Quando Caymmi ainda era um jovem em Salvador (foi para o Rio com 24 anos), tentando viver de bicos como jornalista e cantor/compositor, às vezes se deparava com pessoas como ele, de família humilde, mas que, por diferentes acasos, se alfabetizaram e, a partir daí, construíram novas trajetórias de vida. Dois destes jovens baianos, com quem Caymmi pode ter partilhado caminhos nas ruas de Salvador, ele iria encontrar mais tarde no Rio de Janeiro: Jorge Amado e Carlos Marighella. Eles eram praticamente contemporâneos: Marighella de 1911, Jorge Amado de 1912, Caymmi de 1914.
A história de Jorge Amado é curiosa. Seu pai era um oficial sapateiro da região cacaueira de Itabuna, alfabetizado e profundamente politizado, sempre atento às ideias socialistas que circulavam pela Europa, ainda antes de existir um Partido Comunista no Brasil. O sapateiro socialista ganhou um grande prêmio em uma loteria e, profundo observador dos mecanismos de poder e riqueza da época, usou a pequena fortuna que recebeu para se converter em fazendeiro e coronel: comprou uma grande fazenda, um casarão no centro de Ilhéus, outra propriedade em Salvador e mandou os filhos estudarem na capital. Tornou-se coronel, mas se manteve socialista e manteve esta tradição na família. Jorge Amado se constituiria em um dos quadros intelectuais do Partido Comunista do Brasil (PCB) e, por sua militância, seria eleito deputado constituinte – foi eleito pela célula do PCB em São Paulo – para escrever a constituição de 1946, a constituição democrática pós-Estado Novo.
Carlos Marighella nasceu em Salvador, na Baixa dos Sapateiros, área popular da cidade. O pai de Marighella era um mecânico nascido na Itália, alfabetizado e orgulhoso de suas convicções políticas. Como Jorge Amado, Marighella também seria deputado constituinte eleito pelo PCB em 1946, e desenvolveria forte amizade com o escritor de Capitães da Areia.
Nos anos 1980-1990, Jorge Amado se desligaria formalmente do PCB, mas jamais deixou de referenciar a energia, a lucidez política e a generosidade pessoal de Marighella.
Estes três baianos conviveriam no Rio de Janeiro até pouco depois da aprovação da nova Constituição. Depois disto, com o PCB proibido de atuar no Brasil, Marighella cairia na clandestinidade (no Brasil) e Jorge Amado passaria a viver na Europa, restando apenas Caymmi no Rio.
Enquanto Marighella tinha olhos sobretudo para as grandes populações de trabalhadores das regiões de portos e docas, Caymmi dedicou especial atenção às comunidades dos pescadores, onde os trabalhadores do mar protagonizavam suas próprias histórias de amor, sofrimento e tragédia, longe da tutela de patrões brancos.
“O Mar” se tornou uma das canções emblemáticas de Caymmi. Começa com versos aparentemente simplórios (“O mar quando quebra na praia / é bonito, é bonito!”), mas que, na verdade, servem para emoldurar a narrativa, que envolve a morte trágica de um pescador (“Deram com o corpo de Pedro / jogado na praia / roído de peixe / sem barco sem nada / num canto bem longe lá do arraiá”), e a solidão e loucura reservadas para sua companheira (a “Rosinha de Chica”, que, traduzindo do linguajar da Bahia, significa “a jovem Rosa, filha de Francisca”).
Fechando a canção e a moldura, os versos iniciais são repetidos (“O mar… é bonito”), como a dizer que a vida no mar é cruel, violenta, traiçoeira, mas, essencialmente, bela.
Por diferentes caminhos, esta reverência de Caymmi à vida dos pescadores baianos se converteu em louvor à despreocupação e à preguiça.
Ele próprio, Caymmi, gostava de associar sua imagem à de um homem do mar, que vive no seu próprio ritmo. Uma de suas fotos mais famosas o retrata, todo bonito, com o violão no colo, num barco que navega na baía.
Em uma carta que escreveu, quando morava no Rio, para o amigo Jorge Amado, que se encontrava em Londres, Caymmi reclamou, de forma irônica, que lhe faltava tempo para se dedicar a um de seus hobbies: a pintura. E quando Jorge Amado divulgou esta carta, é claro que ela ajudou a fixar a imagem de Caymmi como sujeito feliz e despreocupado.
Abaixo, um pequeno trecho.
“O que me falta é tempo para pintar. Compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?”
O post ficou longo, mas quero registrar duas versões de uma canção de Caymmi, “Lendas do Abaeté”.
O Abaeté, lugar muito distante, era marcado por suas belas dunas brancas, com uma grande lagoa de água doce (digo “era”, embora o Abaeté ainda esteja lá, porque depois de décadas de exploração comercial já não é o mesmo Abaeté). Segundo se dizia, a lagoa era frequentada, durante o dia, pelas mulheres das comunidades próximas, que aproveitavam a água doce para lavar as roupas da família. Mas, durante a noite, a lagoa era local de habitação dos espíritos dos primeiros africanos que foram trazidos para a Bahia.
A primeira versão é de Caymmi, do disco “Canções praieiras”, de 1954. A segunda versão é uma das peças que mais gosto do repertório de Baden Powell, do disco “27 horas de Estúdio”, de 1969.
Do trio de baianos, Caymmi e Jorge Amado morreram tranquilos, velhos e cercados pelos amigos e familiares. Já Marighella morreu assassinado em São Paulo, em novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, descendo o Parque Trianon em direção aos Jardins, próximo ao cruzamento com a Alameda Lorena, em uma emboscada armada pelo delegado Sérgio Fleury e que envolveu tudo o que havia de mais sórdido na ditadura militar: as torturas sistemáticas e brutais contra várias pessoas às quais se atribuía qualquer fiapo de vínculo com a ALN, incluindo os frades dominicanos que serviram de isca para a emboscada; a manipulação das autoridades e de laudos médicos; a farsa dos comunicados oficiais; e a repulsiva adesão da imprensa, que divulgou rapidamente a versão mentirosa, que atribuiu ao militante baiano a autoria da morte de duas pessoas (vítimas na verdade, da própria truculência da equipe de Fleury) na operação de extermínio.
Jorge Amado nunca deixou de reverenciar o amigo morto e, num de seus textos, disse:
“Dentro dele, a ternura e a ira. Conhecia de perto a miséria e a opressão mas conhecia também a força e a capacidade de resistência do povo. De quando em vez releio seus poemas; sabiam que ele foi poeta? Ternura e ira em seus poemas simples, claros, brasileiros. Sendo homem de ação mais que um teórico, a poesia marcou cada instante de sua vida. Tudo nele era sincero, digno e puro”.
Neste mesmo manifesto, lembrou uma das conexões que uniam aqueles baianos: “manteve até o fim o bom humor e a pureza; amadureceu sem deixar de ser o estudante adolescente: mestiço de sangue negro e sangue italiano, como Dorival Caymmi, mistura de primeira”.
Acho que deve ter algo de errado com nossos sistemas de ensino, porque não me conformo quando constato que em uma sala de aula de estudantes universitários baianos quase ninguém sabe dizer quem foi Marighella ou leu algum livro de Jorge Amado ou, ao menos, teve a experiência de ouvir a voz e o violão de Dorival Caymmi.
Terminando, uma canção em parceria entre Caymmi e Jorge Amado, “É doce morrer no mar”.
P/S
Gilberto Gil completou recentemente 78 anos de idade, e me lembrei de uma canção de seu repertório que está no disco “Parabolicamará”, de 1991. Ao “estilo Caymmi”, Gil reelabora a distinção entre, por um lado, o mundo do trabalho, do relógio, da eficiência e, por outro, o mundo da utopia, do descanso e da poesia, este, porém, representado não pelos pescadores, mas pelos estudantes, operários e os índios do Xingu.
Eu tive um sonho
que eu estava certo dia
num congresso mundial
discutindo economia
Argumentava
em favor de mais trabalho
mais empenho, mais esforço
mais controle, mais-valia
[…]
Disse por fim
para todos os presentes
que um país só vai pra frente
se trabalhar todo dia
[…]
Foi quando um velho
levantou-se da cadeira
e saiu assoviando
uma triste melodia
Que parecia
um prelúdio bachiano
um frevo pernambucano
um choro do Pixinguinha
[…]
Os estudantes
e operários que passavam
davam risada e gritavam
viva o índio do Xingu!
CARLOS AUGUSTO FERNANDES DO NASCIMENTO
Fabulosa e importante argumentação professor Luís. Concordo em gênero e número quanto ao imenso crime que representa o apagamento da história de nossa fantástica cultura em favor de processos desumanos de mecanização social, voltados a ganhos inconsequentes e a interesses mesquinhos. Penso inclusive que nossa formação “preguiçosa”, ainda que se tratando de uma falácia, suscite alguma inveja nessas elites donas das “verdades” produtivas e “eficientes” deste país. Assim como para nós baianos, um imenso e impagável acervo da cultura popular brasileira se encontra à beira da extinção, relegada ao esquecimento imposto pela pressa e pela massificação consumo como forma de afirmação de pertencimento sócio-cultural.
Parabéns
Maria da Graça Menezes Bruxellas
Fantástico esse resgate a verdadeira História dos baianos.Que triste termos o preconceito arraigado em nossa pobre cultura.Fico feliz de ter tido aceesso a essas informações.
Gedeval Paiva
Que primor de texto, uma perfeita combinação de crônica, historiografia e análise política e social! Uma descrição da Bahia que poucos baianos fariam. Obrigado pelo prazer dessa leitura meu amigo Luíz, saudades dos tempos de celebrar a vida e amizade, regado a uns goles e bom papo!
André Effgen
Excelente texto! Riqueza de informações e uma articulação ímpar. Um olhar sobre a representação da Bahia nos seus mais diversos aspectos…cultural, místico, político e econômico. Seu coração já mais baiano do que o de muitos nascidos aqui! Bravo!
Erbene
Parabéns pelo texto primoroso Luiz! Um resgate importante da alma baiana, a partir da articulação perfeita entre história, arte e política, protagonizada por esses ícones, cujas vidas, se confundem com a própria história da Bahia!👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
Angelita Cunha da Silva Sousa
Que texto lindo, essa visão do povo baiano como preguiçoso e indolente está muito distante da realidade. Você conseguiu de forma poética, fazer com que as pessoas reflitam sobre a temática e a quem interessava ou continua interessando a manutenção de tal posicionamento.
Rangel Junior
Parabéns, Luiz. Excelente construção argumentativa, um ensaio de altíssimo nível e que coloca a história e a musicalidade poética deste grande brasileiro em patamar de profundo respeito. Uma visão excepcional sobre Dorival, além de uma felicidade na escolha do titulo do texto. Achei muito bem escolhido.
Remi Amorim Ferreira
Que construção argumentativa excepcional! Faz todo sentido.
Nunca acreditei mesmo que houvesse essa tão falada “preguiça baiana “. Faltavam-me os fundamentos para combatê-la. Agora, ei-los!
Credito esse imaginário popular da preguiça (talvez) ao “falar arrastado” do baiano, que leva a crer, esteja com claro desânimo.