Volta Seca: música e cangaço em terras nordestinas

Na minha família, sempre fui, dos filhos, o mais “caseiro”. Isto fez com que eu fosse, até quando comecei a trabalhar, em 1978 (quando já tinha terminado o “ginásio”), uma espécie de auxiliar de minha mãe nos trabalhos da casa: passar escovão ou enceradeira no piso da casa (escovão dia sim, enceradeira dia não), cortar temperos, enxugar a louça etc.

Minha mãe sempre mantinha ligado um aparelho de rádio, desde a hora em que acordava até mais ou menos 6h da tarde. A partir daí, ligada ficava a TV, na Globo.

E, ao longo do dia, minha mãe ia cantarolando canções que ouvia no rádio. E tinha uma canção que ela cantava com frequência, mas que eu nunca ouvia tocar no rádio, com uma letra que dizia:

Acorda Maria Bonita
levanta e vai fazer o café
que o dia já vem raiando
e a polícia já tá de pé.

Quando eu perguntava sobre esta canção, ela dizia vagamente que era música antiga, de seu tempo de “moça”.

Minha mãe nasceu em Lins, filha de um casal de portugueses que veio tentar a sorte nas lavouras do interior de São Paulo, e foi morar em Bauru em 1955, onde se casou com meu pai. Foi só aqui na Bahia que vim a descobrir que, no tempo em que minha mãe era “moça”, o autor dessa canção viveu como detento no Presídio de Salvador.

Antônio dos Santos foi preso em 1932, condenado inicialmente a 145 anos de prisão. Depois teve a pena reduzida para 30 anos. Quando completou 20 anos de cadeia, o Presidente do Conselho dos Presídios da Bahia, Dr. Estácio de Lima, professor da Faculdade de Medicina da Bahia (que, nesta altura, já integrava a Universidade Federal da Bahia), conseguiu um perdão, junto ao Presidente Getúlio Vargas, que garantiu a liberdade para o prisioneiro.

Cinco anos depois que saiu da cadeia, Antônio dos Santos gravou seu único disco, Cantigas de Lampeão, usando o apelido pelo qual era conhecido no sertão nordestino: Volta Seca.

Antônio dos Santos nasceu no interior de Sergipe, perto de Itabaiana. Seu pai era “morador” de um rico fazendeiro.

“Morador” remete à principal forma de trabalho rural ao longo da maior parte do século XX, não apenas em Sergipe, mas em todo o Nordeste. O morador trabalhava nas terras do patrão, mas não recebia salário. A contrapartida do trabalho era o direito de morar em uma área cedida pelo fazendeiro. Nesta área, ele poderia erguer seu casebre e trabalhar numa roça própria (desde que em dias e horários que não atrapalhassem o cumprimento de suas obrigações para com o patrão/fazendeiro).

E era desta roça, organizada perto de seu casebre, que o morador tinha que retirar o necessário para se alimentar, pois o patrão não se sentia na obrigação nem de pagar salário nem de repassar parte da produção da fazenda (carne, leite, farinha etc.).

Os fazendeiros não se opunham a que seus moradores constituíssem família. Pelo contrário, já que os filhos de um morador também se tornavam trabalhadores para o fazendeiro.

Quando Antônio tinha 10 anos, decidiu que não seguiria a sina de seu pai e saiu de casa. Com 11 anos, perambulando pela Bahia, soube da proximidade do bando de Lampião e solicitou ingresso. Nunca havia frequentado uma escola e, como todos os seus irmãos, não sabia ler nem escrever.

Afirmou ele, em uma das várias entrevistas que concedeu ao longo do tempo em que esteve na prisão, que falou diretamente com Lampião nestes termos:

“Si o Sinhô acha qui nun sirvo prouta coisa, deixe eu ficá pra lavá os animá, fazê mandado, limpá o chão… Já sirvi de quêmadêro, fiz trabaio de roça, sei amontá in osso, e dou recado sem errá…”

A lista de atividades que Antônio se dizia capaz de realizar mostra, ao menos em parte, o que era a vida de uma criança de 10 anos, na condição de filha dos moradores que compunham a mão de obra rural do nordeste: lavar os animais (em especial, os animais do patrão), limpar o chão (o “terreiro”), trabalhar de queimadeiro (ajudar nas queimadas dos terrenos que depois seriam usados para plantação), participar do trabalho de roça (cavar, semear, colher, remover ervas daninhas etc.), “amontá in osso” (montar em animais sem necessidade de qualquer apetrecho de selas ou arreios), “fazê mandado” (ou seja, fazer tudo o que lhe for ordenado), dar recado (servir de mensageiro entre o patrão e seus vaqueiros e moradores ou entre o patrão e outros fazendeiros ou, ainda, entre o patrão e personagens da cidade, como o padre, os comerciantes etc.).

Em outra entrevista, Antônio dos Santos esclareceu os motivos que levavam um menino de 11 anos a pretender entrar no cangaço. Segundo ele, quando morava com os pais, via a família periodicamente vitimada pela seca, acossada pela fome, e jamais o patrão, o dono da fazenda, se mostrava capaz de um mínimo gesto de ajuda (“nunca uma vasilha de leite, nunca um pedaço de queijo, nem quando minha mãe paria um de meus irmãos”).

Mas, quando passava um grupo de cangaceiros na região, o fazendeiro logo separava um bom pedaço de carne de sol ou de charque, queijos, manteiga, farinha e aguardente para entregar ao grupo, como forma de se prevenir de maiores violências.

Isto talvez ajude a entender porque Lampião, apesar da violência e crueldade indiscutíveis de suas ações, desfrutou de uma imagem positiva entre vários sertanejos. Afinal, ele, e os cangaceiros em geral, representava talvez a única via pela qual um morador ou vaqueiro poderia chegar a impor temor e respeito aos senhores das terras.

Além disso, como Antônio dos Santos afirma, em outra entrevista, “cangaceiro pelo menos não morre de fome. Morrer de fome é pior do que morrer na ponta da faca ou na boca do rifle”.

No bando de Lampião, Antônio dos Santos ganhou o apelido de Volta Seca e, lá, além da aprendizagem das artes do cangaço também se descobriu hábil no manejo da sanfona e na composição e improvisação de versos, mesmo sem saber ler nem escrever (disse ele em suas entrevistas que somente depois de preso aprendeu a “assinar o nome”). Tornou-se um cantador.

Volta Seca nunca foi reconhecido, no Nordeste, como um cantador dos grandes – como foram Romano da Mãe d’Água, Inácio da Catingueira, Cego Aderaldo, Zé Limeira e vários outros. E, além do mais, a sua voz não era das mais notáveis entre os cantadores. Também na habilidade de composição de versos não se ombreava com nomes como Leandro Gomes de Barros ou Patativa do Assaré.

Mas um cantador era sempre bem-vindo em qualquer grupo – de vaqueiros, de camponeses, de cangaceiros… Era a figura que animava os pousos, depois de um dia de caminhada, tirador de toadas que quase todos conheciam de memória, criador de versos instantâneos de zombaria e ironia.

A canção “Acorda, Maria Bonita” se tornou uma das mais populares dentre aquelas que Volta Seca reivindicou a autoria. A canção serviu para associar um tanto de glamour à história das mulheres do cangaço e, por extensão, dos próprios cangaceiros. Como se todo cangaceiro tivesse uma companheira bonita, vaidosa, dedicada ao companheiro como verdadeira esposa, preparando o café de manhã e seguindo alegremente pelas terras inóspitas das caatingas nordestinas. Creio que não exista um mercado, de qualquer cidade nordestina, que não tenha, ainda hoje, algumas imagens do casal Lampião e Maria Bonita. Aqui em casa, mesmo, mantemos com carinho algumas destas.

Mas, além de Maria Bonita, a história do cangaço também carrega outras trajetórias de mulheres, que ficaram mais ou menos conhecidas, e que revelam modos diversos de inserção das mulheres no mundo, eminentemente masculino, do cangaço. Acho que vale falar, ainda que de forma muito sintética, de dois casos: o de Dadá, companheira de Corisco, e o de Lídia, companheira de Zé Baiano.

Maria Bonita fotografada por Benjamin Abrahão em 1936, quando tinha 26 anos de idade. Original em preto e branco, colorida por computação gráfica.

Dificilmente, um membro do grupo de cangaceiros se dirigiria a Dadá de forma imperativa para que ela se levantasse e providenciasse café para o grupo. Talvez nem seu companheiro, com quem se casou oficialmente em um momento de trégua nas lidas dos combates.

Dadá foi tirada de casa por Corisco quando tinha apenas 13 anos. Foi, literalmente, raptada e violentada. Porém, com o passar dos anos, a relação entre os dois foi assumindo novos nuances. Corisco era alfabetizado e ensinou Dadá (na verdade, Sérgia) a ler, escrever e fazer contas. Depois, ensinou-lhe o manejo das armas, tanto armas brancas como as de fogo. Dizem que, no manejo de um rifle, poucos homens poderiam rivalizar com ela. E, mais ainda, Dadá revelou-se uma pessoa dotada de singular capacidade de análise de cenários e situações e excelente conselheira nos debates em que os chefes tomavam as decisões que envolviam todo o grupo. Ela não era a companheira/esposa de Corisco, como era Maria Bonita em relação a Lampião, mas uma autêntica combatente, com lugar de destaque nas lutas e nas decisões.

Dadá permaneceu com Corisco até o fim, em Barra do Mendes (Bahia, perto de Seabra e Brotas de Macaúbas), em 1940. O mesmo ataque que resultou na morte de Corisco deixou Dadá gravemente ferida e, mais tarde, obrigou-a a amputar a perna direita. Quando se recuperou, foi liberada de denúncia perante a justiça e pôde reiniciar sua vida em Salvador, morando com o segundo marido e com duas das filhas que teve com Corisco.

Maria Bonita e Dadá eram figuras singulares, mas talvez a história feminina mais reveladora do cangaço seja a de Lídia.

Lídia era companheira de Zé Baiano, provavelmente o mais violento dos cangaceiros do grupo de Lampião, que carregava a terrível fama de marcar as suas iniciais (JB), com ferro em brasa, no rosto das mulheres que violentava. Lídia foi surpreendida, por um cangaceiro de Lampião conhecido pelo apelido de Besouro, em uma relação sexual com um cangaceiro de outro grupo comandado por Virgínio (que era cunhado de Lampião). Besouro teria tentado se aproveitar da situação e passado a assediar Lídia. Quando a história veio à tona, Lampião executou imediatamente, com um golpe de facão, sem oportunidade de discursos ou argumentações, Besouro, enquanto Zé Baiano assassinou sua companheira a golpes de pau. Quanto ao cangaceiro que se deitou com Lídia, Lampião decretou: “cumpade Virgínio [o chefe do sujeito] é qui dicide a sorte desse égua corredô, si deve ou não morrê”.

A história é emblemática: o chefe de um grupo de cangaceiros tinha poder de juiz e de carrasco sobre seus homens, mas cada cangaceiro tinha igualmente poder de juiz e carrasco sobre suas companheiras. Dizem alguns testemunhos que Lampião teria ordenado a morte, a golpes de punhal, de ao menos duas mulheres de seu grupo: Rosinha e Cristina. Estas mortes, no entanto, não invalidam a regra geral de que os destinos das mulheres do cangaço eram ditados pelos seus companheiros homens: Rosinha e Cristina teriam resolvido abandonar o grupo e o cangaço e, ao assim decidirem, seus companheiros deixavam de ter autoridade “natural” sobre elas que, então, se expunham às determinações do chefe do grupo.

A história de Lídia é emblemática não apenas da sociedade dos cangaceiros, mas de todo o mundo rural do nordeste brasileiro na primeira metade do século XX, ou, até mais amplamente, de toda a sociedade brasileira da época, que via como “natural” a ausência de direitos de cidadania para homens em condição subalterna nas relações de poder e de produção e para as mulheres em geral.

Além de Acorda, Maria Bonita, Volta Seca, no grupo de Lampião, associou seu nome a uma canção que, junto com Asa Branca de Luiz Gonzaga, se tornou uma espécie de símbolo do Nordeste: Mulher Rendeira, ou, no linguajar sertanejo, Mulé Rendêra. Era a música mais executada no grupo de Lampião, nos pousos noturnos ou entoada como canção de marcha nas caminhadas dos cangaceiros.

No final do ano de 1929, quando Volta Seca ainda não tinha completado 12 anos, o grupo de Lampião tomou uma cidade chamada Queimadas, no norte da Bahia, perto de Capim Grosso e caminho para a cidade de Senhor do Bonfim. Estas ações normalmente seguiam um padrão. Ao chegar na cidade, uma parte do grupo se dirigia à delegacia, onde fazia prisioneiros os (poucos) soldados do local, enquanto o grosso do grupo descia à cidade para o saque. Normalmente, o próprio temor infundido pela presença de Lampião fazia com que, rapidamente, os moradores entregassem suas posses, e os cangaceiros, de forma rápida e sem sobressaltos, saíam da cidade com um bom botim.

Ocorre que esta estratégia de ação, para funcionar de forma eficiente, necessitava que o temor pela presença de Lampião fosse periodicamente renovado. Isto implicava que, às vezes, de forma aleatória, em algumas cidades, a violência corria solta, com episódios de torturas, assassinatos, estupros, sequestros de mulheres etc.

Naquele dia, em Queimadas, Volta Seca ficou encarregado, com alguns outros cangaceiros, de tomar a delegacia e vigiar os soldados. Na saída da cidade, Lampião deu ordem para que todos os soldados fossem mortos. O próprio Volta Seca executou três: um a tiros de “papo amarelo” e dois sangrados no punhal.

Três anos depois, Volta Seca se desentendeu com Lampião e saiu do grupo. Mas terminou preso em Bonfim, pouco depois. Foi o início de sua vida de presidiário.

Volta Seca, quando foi preso, em 1932, com 14 anos de idade.

Na penitenciária de Salvador, Volta Seca se converteu em uma espécie de celebridade. Era frequentemente procurado por jornalistas e cronistas, que queriam recolher detalhes das histórias dos cangaceiros, em especial de Lampião, que ainda corria pelos territórios do sertão nordestino.

E era também frequentemente requisitado para realização de diversos tipos de exames médicos, conduzidos pelos professores de antropologia criminal e antropometria da Faculdade de Medicina de Salvador. Tratava-se, em sua maioria, de pesquisadores que se consideravam herdeiros de Nina Rodrigues, médico que pretendeu, no final do século XIX e início do século XX, estabelecer bases antropológicas e raciais (na verdade, racistas) para abordar a criminalidade.

A influência do pensamento de Nina Rodrigues sobre sucessores, como Afrânio Peixoto, Arthur Ramos e Estácio de Lima, fez com que parte da história da Medicina na Bahia se associasse a um triste espetáculo de medições de crânios e de cabeças decepadas.

Volta Seca não teve a cabeça decepada, mas não se livrou de ser sistematicamente examinado por doutores, que enxergavam no cangaceiro menino a oportunidade de comprovar a tese da vinculação entre criminalidade e genética. Provavelmente esta tese servisse para oferecer conforto às elites brancas, rurais e urbanas, do Brasil da primeira metade do século passado, pois assim se sentiam justificadas por não serem capazes de divisar nos negros e mestiços, que compunham a maioria absoluta da população, qualquer traço de dignidade e merecimento de direitos políticos, sociais e, mesmo, humanos.


Exame de crânio de Volta Seca, para detectar traços de uma raça “degenerada” (caninos animalescos, face prognata, cabeça deformada, sobrancelhas cerradas, malares salientes, entre outros, segundo os manuais de inspiração lombrosiana da época). Os crânios de Lampião, Corisco, Maria Bonita e outros também foram examinados, mas, nestes casos, a análise antropométrica prescindiu dos corpos dos cangaceiros.

Além de emprestar ares científicos e legitimar as políticas de Estado fundamentadas na exclusão de negros, mestiços e pobres – vistos como meros obstáculos para a marcha do progresso e da razão –, a escola antropológica criminal de Nina Rodrigues e seus seguidores terminou por chancelar uma política secular absolutamente atroz, intimidadora e horripilante do Estado brasileiro: a profanação dos cadáveres dos inimigos da ordem.

Desde os tempos coloniais, ter o cadáver ultrajado, frequentemente mediante a decapitação póstuma, foi o destino reservado a rebeldes como Zumbi (em 1695), Tiradentes (1792) e os rebelados da Revolta dos Búzios, em Salvador (1799). A prática continuou no Império, com Lucas da Feira (1849), e na República, com os rebeldes de Gumercindo Saraiva, no Rio Grande do Norte (1894), com Antônio Conselheiro (1897), e prosseguiu com as cabeças de Lampião, Maria Bonita, Corisco e de mais uma dezena de cangaceiros.

Mas, de Nina Rodrigues (que recebeu, em Salvador, a cabeça decepada de Antônio Conselheiro para pesquisar os estigmas da degenerescência) em diante, o que era apenas a manifestação bruta do poder contra rebeldes se converteu em prática científica; macabros troféus de guerra, as cabeças decepadas foram elevadas à condição de objetos de pesquisa.

Depois que saiu da cadeia, em 1952, Volta Seca soube que estava sendo produzido um filme, pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, sediada em São Bernardo do Campo, sobre os cangaceiros e que Mulher Rendeira iria fazer parte da trilha sonora. Volta Seca se aproximou de Lima Barreto, o diretor, e acompanhou a conclusão do filme, mas seu nome não apareceu nos créditos. Embora, nos créditos, Mulé Rendêra aparecesse como autoria “anônima”, a canção terminou associada a um sanfoneiro pernambucano, Zé do Norte, que assinou a autoria de outras canções e chegou a atuar, como ator, em “O Cangaceiro”.

Créditos referentes à trilha sonora de O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953).

De fato, apesar das pretensões de Volta Seca, é muito difícil precisar a autoria de Mulher Rendeira, embora seja praticamente certo que tenha sido criada no bando de Lampião, pois se trata de um caso típico do cancioneiro popular nordestino. A partir do mote “olê mulé rendêra” e do ritmo, foram sendo acrescentados dezenas de estrofes diferentes, por diferentes e anônimos cantadores, de forma que, já nas décadas de 1950 e 1960, se contavam várias versões diferentes da canção.

É provável que Lima Barreto não quisesse a voz de Volta Seca em seu filme, e também deve ter apreciado mais a versão de Zé do Norte do que a de Volta Seca. A versão de Zé do Norte, que foi inserida no filme, trazia os seguintes versos:

Olé, mulé rendêra,
olé mulé rendá
tu me ensina a fazer renda,
eu te ensino a namorá.

Olé, mulé rendêra,
olé mulé rendá,
saudade levo comigo,
soluço vai no emborná.

Olé, mulé rendêra,
olé mulé rendá,
se você tá me querendo,
vamo pra Igreja, vamo casá.

Olé, mulé rendêra,
olé mulé rendá,
e depois de nóis casado,
vou pra roça, vou prantá.

Olé, mulé rendêra,
olé mulé rendá,
tu me ensina a fazer renda,
eu te ensino a namorá.

Já a versão de Volta Seca, que terminou gravada em seu disco de 1957, dizia:

Olê mulé rendêra
olê mulé rendá
a pequena vai no bolso,
a maior vai no emborná
se chorar por mim não fica,
só se eu não puder levar

O fuzil de lampião,
tem cinco laços de fita
o lugar que ele habita,
não falta moça bonita

Olê mulé rendêra
olê mulé rendá

O filme de Lima Barreto acabou tendo boa recepção internacional e recebeu o prêmio de melhor trilha sonora no Festival de Cannes de 1953. Isto fez com que a mulher rendeira fosse gravada por vários cantores e cantoras de várias partes do mundo. Uma destas versões, célebre, é de Joan Baez, que já incorporava versos que não estavam presentes nem na versão de Volta Seca nem na de Zé do Norte.

Mais tarde, Cida Moreira fez um belo registro de Mulher Rendeira, a partir de um arranjo para piano, e com outros versos.

Lampião desceu a serra
deu um baile em Cajazeira
botou as moças donzelas
pra cantá muié rendera

As moças de Vila Bela
não têm mais ocupação
se que fica na janela
namorando Lampião

Mais recentemente, Chico César fez também sua versão da Mulher Rendeira, que gravou como música incidental de sua canção Folia de Príncipe.

Lampião desceu a serra
deu um baile em Cajazeira
ensinou moça donzela
a dançar mulher rendeira

Lampião desceu a serra
com sapato de algodão
o sapato pegou fogo
Lampião caiu no chão

Lampião tava dormindo
acordou-se assustado
atirou numa craúna pá pá pá
pensando que era um soldado pá pá

As moças de Vila Bela
não têm mais ocupação
bota queijo e rapadura
no bornó de Lampião

Depois de gravar Cantigas de Lampeão e perambular por São Paulo e Minas Gerais, em busca de um “trabalho honesto”, Volta Seca conseguiu um emprego na Estrada de Ferro Leopoldina Railway, que ligava a Zona da Mata mineira ao Rio de Janeiro. Em sua última entrevista, concedida para a Globo-Rio em 1995, já aposentado, morando na cidade mineira de Estrela Dalva, a 45 km de Leopoldina, manifestou a esperança de comprar um fusca usado e confessou ter como hobby uma atividade ilegal: a briga de galos.

Volta Seca com sua farda de empregado da estação de trem de Leopoldina (MG)

*Volta Seca, como dissemos, deu várias entrevistas sobre sua vida, durante e depois do período em que esteve preso no presídio de Salvador e nem sempre ofereceu as mesmas respostas para perguntas semelhantes que lhe foram apresentadas. Em diferentes entrevistas ele apresenta diferentes referenciais de datas (a idade com que deixou a casa do pai, o ano em que entrou para o cangaço, as datas de vários episódios envolvendo sua participação no grupo de Lampião etc.). Também apresenta de formas diferentes sua relação com a família e a motivação para se converter em cangaceiro. Em uma entrevista que concedeu ao jornal “O Pasquim”, em 1973, por exemplo, ele fala do pai como um lavrador livre, com terras próprias e capaz de sustentar de forma digna todos os 12 filhos. E também afirma que caiu no cangaço depois de vingar a desonra de uma irmã mais velha, então com 16 anos, que teria sido “abusada” por um homem já casado, em Itabaiana Grande. Isto quando ele contava com 10 anos de idade. As entrevistas aqui relatadas e as datas de referência na trajetória de Volta Seca foram retiradas do livro O estranho mundo dos cangaceiros, de Estácio de Lima, que foi Presidente do Conselho Penitenciário da Bahia e se envolveu pessoalmente para garantir o perdão presidencial que permitiu ao ex-cangaceiro deixar a cadeia em 1952.

*****

Há duas semanas, no dia 23 de julho, faleceu no Rio de Janeiro o músico Sérgio Ricardo, nome que deve ser lembrado e homenageado, em especial ao se falar de música, cinema e cangaço.

Se O cangaceiro contribuiu para divulgar o cinema nacional no exterior e fazer de Mulher Rendeira um fenômeno na história da música brasileira, o filme de Lima Barreto sempre careceu de uma acolhida positiva por parte da crítica especializada. Para muitos, O cangaceiro podia ser definido como um exemplo de nordestern, ou seja, uma obra que, pretendendo falar do Nordeste brasileiro, adotava como esquema narrativo o padrão do western, o faroeste americano, sem se mostrar capaz de desenvolver uma abordagem narrativa ou fílmica original.

Mas, onze anos depois, com Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha iria subverter completamente o modo, industrial e influenciado pelas produções internacionais, de se fazer cinema no Brasil, do qual O cangaceiro se tornou exemplo. Disse, certa vez, o cineasta baiano:

Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade […] nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa […].
Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser compreendido com os grandes problemas de seu tempo; queremos filmes de combate na hora de combate e filmes para construir um patrimônio cultural.

Logo na abertura de Deus e o Diabo, depois da sequência dos créditos ao som das Bachianas brasileiras, nº 2, de Villa-Lobos, o filme de Glauber apresenta a voz de um cantador que anuncia o tema a ser narrado – a história do vaqueiro Manoel e sua mulher, Rosa:

Manoel e Rosa
vivia no sertão
trabalhando a terra
com as própria mão.
Até que um dia
pelo sim e pelo não
entrô na vida deles
o Santo Sebastião.
Trazia a bondade nos olhos
Jesus Cristo no coração

Nos créditos iniciais do filme, os versos cantados por este narrador são apresentados sob o título de Romance (“romance na voz e violão de Sérgio Ricardo, letras de Glauber Rocha”), numa clara alusão aos romances que constituíam parte essencial do repertório dos cantadores nordestinos nos séculos XIX e XX.

As canções que compunham este “romance” foram, posteriormente, gravadas em LP que trazia, em seu encarte, um texto do próprio Glauber Rocha, precedido pelas informações: “Deus e o Diabo na Terra do Sol: cancioneiro do Nordeste composto e interpretado por Sérgio Ricardo e letras de Glauber Rocha”. No texto, Glauber tratou da importância da música, que deixou a cargo de Sérgio Ricardo, para a construção de Deus e o Diabo:

Sou mau cantador – sem ritmo e sem memória, fiquei por tempos a ruminar e reinventar a essência das coisas que tinha ouvido – e um enorme romance em versos nasceu, impuro e rude, narrando o filme. Acabando o trabalho, pronta a montagem, restavam imagens neutras, mortas, que necessitavam da música para viver: eram imagens do romanceiro transcrito. Todo o episódio de “Corisco”, por exemplo, nasceu das cantigas que ouvi cantar em vários lugares diferentes e, dispensada a música, perderia um significado maior.

O episódio de “Corisco”, referido por Glauber, envolve as sequências finais do filme, com a morte teatralizada de Corisco e o ferimento de Dadá, o cangaceiro pronunciando suas últimas palavras (“Mais forte são os poderes do povo”, sugerindo que o fim do cangaço deveria representar o início de outras formas de manifestação da revolta contra o subdesenvolvimento) e a fuga de Manoel em direção ao mar, todas elas conduzidas pela voz e o violão de Sérgio Ricardo:

Se entrega, Corisco!
Eu não me entrego não!
Eu não sou passarinho
pra viver lá na prisão!

Se entrega, Corisco!
Eu não me entrego não!
Não me entrego ao tenente,
não me entrego ao capitão,
eu me entrego só na morte,
de parabelo na mão!

Mais forte são os poderes do povo!
Farreia, farreia, povo,
farreia até o sol raiar
mataram Corisco,
balearam Dadá.

O Sertão vai virar mar,
e o mar vai virar sertão!

Tá contada a minha estória,
verdade, imaginação.
Espero que o sinhô
tenha tirado uma lição:
que assim mal dividido
esse mundo anda errado,
que a terra é do homem,
não é de Deus nem do Diabo!

Termino com uma fala de Glauber sobre a maneira como ele via o cinema e a música: linguagens que deveriam se afirmar a partir do compromisso de tentar compreender a alma brasileira:

Acho que o cinema brasileiro tem, nas origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música – o nosso triste povo canta alegre, uma terrível alegria de tristeza. O samba de morro e a bossa nova, o romanceiro do Nordeste e o samba de roda da Bahia, cantiga de pescador e Villa-Lobos – tudo vive desta tristeza larga, deste balanço e avanço que vem do coração antes da razão.
[…] É assim que nossa música no cinema funcionará sempre como a explicação profunda da alma brasileira.

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  1. Reginaldo Santos Pereira

    Que a prosa-poesia desse paulista-baiano-nordestino (em tempos e para além da pandemia) encha nossas almas de alegrias. Viva ao nordeste, à sua música, cinema e artes. Parabéns, Luiz!

  2. Selma Matos

    Como pode um paulista ter uma alma assim, tão nordestina? Nos (in) formando sempre e, com a sensibilidade de suas narrativas, nos (re) conectando com a história de nosso povo e.com nossa identidade! Valeu Luiz!

  3. Conheci esse LP com as canções do Cangaço no Museu Fonográfico Luiz Gonzaga, em Campina Grande. No ano de 2001 tive a oportunidade de gravar uma faixa de CD, com maioria de canções autorais, incluindo um destes temas, com interpretação minha. Parabéns pelo belo trabalho. Um excelente registro.

  4. Belarmino Souza

    Em meados dos anos 70, nos raros momentos de repouso em casa o motorista Zé Mineiro, meu pai, levava a família para assistir filmes antigos (hoje clássicos) no antigo Cine Eldorado, que ficava na esquina da Avenida Deraldo Mendes com a Rio Bahia (atual avenida Integração). Predominavam as chanchadas, filmes de Mazzaropi, de cowboy, mas um dia foi O Cangaceiro. Ocorreu uma reunião das então desacreditadas estórias dos meus avós maternos com os filmes de cowboy, que via no mesmo cinema ou na tv. Só na adolescência tive contato com a produção do conterrâneo Glauber Rocha, que meu pai chamava de “o filho doido de Adamastor”. Com leveza e erudição que são sua marca, Luís Otávio fez emergir memórias e uma gama de informações que até então eu ignorava.

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