I
Quando eu era menino, lá em Bauru, e o lazer de casa era, à noite, assistir televisão, havia três personagens que, se aparecessem na tela, estragavam o humor de meu pai. Na época, não existia controle remoto e remover o motivo do desgosto era uma operação um tanto trabalhosa, mas, para meu pai, sempre necessária.
Um destes personagens era Ney Matogrosso; me lembro bem da indignação de meu pai (eu tinha 10 para 11 anos) quando, de repente, o locutor anunciava os Secos & Molhados e surgia a figura fantástica de Ney, ostensivamente seminu, com aquela voz enigmática de soprano masculino. O outro era Caetano Veloso, a quem meu pai tinha uma aversão que era extensiva aos outros baianos – Gil, Gal e Bethânia; mas Caetano, talvez por ser o mais assumidamente provocador do grupo, era o que inspirava os mais dolorosos resmungos.
O terceiro personagem era Tony Tornado. Demorei um pouco para entender o motivo da zanga paterna com Tornado, pois estes assuntos não eram explicitados nas conversas domésticas. Intuía que o descontentamento com Ney e Caetano se relacionava com um certo estereótipo de masculinidade viril que, definitivamente, estes dois se orgulhavam de questionar. Mas Tony Tornado?
Eu conhecia Tony Tornado basicamente como ator de televisão, e ele nem era um artista onipresente nos programas de TV, como eram os outros dois. Só mais tarde entendi que esta zanga tinha origem em um episódio mais antigo, quando Tony Tornado se apresentava como cantor, ocorrido em 1970, do qual eu não tinha lembrança precisa.
Foi num dos festivais de música da TV, daqueles que abrangeram basicamente a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos da de 1970. Mais precisamente, o Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo.
Desde a edição do AI-5, em dezembro de 1968, o governo ditatorial já fazia marcação cerrada contra alguns artistas vistos como “perigosos” e os festivais de música se constituíam em atividade particularmente sensível, pois, à época, mobilizavam grande audiência e autênticas torcidas, a favor ou contra, dirigidas a músicos e a músicas. Foi justamente em um Festival da Globo, o de 1968, que o clima de ameaça começou a se materializar em atos concretos de intimidação que, naquele ano, levaram ao exílio de Geraldo Vandré, depois de defender sua “Caminhando…” no palco do Maracanãzinho. Quatro anos depois, o último dos festivais terminaria em pancadaria policial contra artistas e jurados e perseguições a outros como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Edu Lobo e Ruy Guerra.
Mas em 1970 os eventos do Festival da Canção da Globo que envolveram Tony Tornado não se relacionavam a qualquer letra incendiária ou denunciadora da violência do regime. A música defendida pelo cantor, que acabou vencendo o festival, BR-3, tinha uma letra vaga, que permitia várias interpretações, mas nem o mais dedicado e imaginativo censor conseguiria identificar qualquer traço de mensagem política antiditadura.
O que incomodava, essencialmente, era a postura corporal de Tornado. Ele não era “jovem” como, em geral, eram os músicos da era dos festivais (Chico Buarque tinha 22 anos quando ganhou seu primeiro festival, com A banda). Em 1970, Tony Tornado (na certidão de nascimento, Antônio Viana Gomes, filho de mãe guianense e pai brasileiro) tinha 40 anos e uma história de atuação nas periferias de São Paulo promovendo bailes black. Além disto, ele tinha residido, por alguns anos, no Harlem, bairro da comunidade negra de Nova York. Tony chegou nos EUA pouco depois do assassinato de Malcom X, acompanhou os movimentos negros de reivindicação de direitos civis, testemunhou o assassinato de Martin Luther King, em 1968, e assistiu à organização de movimentos que associavam a luta dos negros com os ideais do socialismo, como o dos Panteras Negras e sua exaltação do black power (poder negro) e ênfase no lema black is beautiful.
Quando entrou no palco, na noite da final do Festival Internacional da Canção, com o peito nu por baixo de uma espécie de blazer (apenas com um pintura de algo que lembrava um sol), seus cabelos estilo black power, e dançando de forma a, orgulhosamente, salientar seu corpo e sua agilidade, não importava o que falasse ou cantasse, sua postura já parecia contestatória.
Para completar o quadro, com uma recente inserção no circuito das emissoras de TVs, atuando como figurante em novelas, Tony Tornado acabou se integrando a um círculo de amizades e camaradagens formado por atores/atrizes e cantores/cantoras. E, neste movimento, se separou de sua primeira esposa e iniciou uma relação amorosa com uma atriz da Globo, branca e loira: Arlete Sales. A soma de tudo isto fez de Tony Tornado, aos olhos da elite e da moral conservadora da época, a figura clássica do “negro que não conhece o seu lugar”. Uma ameaça às filhas das famílias de bem.
Tony Tornado foi conduzido para depoimento depois da final do festival de 1970 e isto se tornaria rotina até que ele entendesse que tais ações policiais se repetiriam indefinidamente enquanto permanecesse no Brasil. Deixou o país e só voltou depois de três anos.
II
Sérgio Danilo Junho Pena, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor em Genética Humana pela Universidade de Manitoba (Canadá), com pesquisas desenvolvidas em estágio de pós-doutorado no Institute for Medical Research, Mill Hill, Londres, é uma das grandes autoridades brasileiras nos estudos sobre diversidade genômica humana e formação e estrutura da população brasileira. Telma de Souza Birchal é também professora da UFMG, Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com pós-doc na Universidade de Oxford e na Notre Dame (Indiana, EUA).
Em trabalho acadêmico interdisciplinar, Sérgio Pena e Telma Birchal desenvolveram um estudo que foi publicado em 2006 na Revista USP com o título “A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social?” Neste artigo, os autores apresentaram um apanhado de várias “evidências científicas que suportam a tese de que, do ponto de vista biológico, raças humanas não existem”.
Diferentes evidências apontam que o homem moderno, batizado pela ciência como Homo sapiens sapiens, tem origem única, na África, e recente, há cerca de 150 mil anos. Tudo indica que, há mais ou menos 100 mil anos, alguns grupos de sapiens sapiens emigraram da África para outros continentes (Europa, Ásia, América…), substituindo, por diferentes meios, outras populações humanas pré-existentes (espécies arcaicas do Homo sapiens ou comunidades de sapiens neadertalensis). Transcorridos mais ou menos 50 a 60 mil anos após esta diáspora original, algumas variações morfológicas (ou seja, no âmbito da aparência externa: estatura, cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz, dos lábios e dos olhos etc.) passaram a ser desenvolvidas de acordo com os ambientes de fixação geográfica destes grupos populacionais de sapiens sapiens.
Uma característica da espécie humana é sua extraordinária diversidade e variabilidade genômica. Com exceção de casos de gêmeos monozigóticos, não é possível imaginar dois seres humanos idênticos: “entre dois indivíduos quaisquer da população, há pelo menos seis milhões de diferenças na sequência genômica […] todos os seres humanos possuem um genoma diferente e único”.
Todos os estudos sobre variabilidade genômica humana, realizados desde a década de 1970, com populações vinculadas a diferentes comunidades que a literatura científica costumava identificar como “raças” (africanas, ameríndias, aborígenes australianos, asiáticas, caucasianas etc.) indicaram que a maioria (mais de 85%) das variações genômicas observadas ocorriam entre indivíduos de um mesmo grupo, e outras (em torno de 8%) envolviam indivíduos de um mesmo grupo, porém com diferentes fixações geográficas. Apenas 6% das variações genômicas observadas envolviam indivíduos de grupos (ou “pseudo-raças”) diferentes.
Isto ocorre porque as variações morfológicas observadas entre caucasianos, negros, ameríndios, asiáticos (cor da pele, formato do nariz etc.) são praticamente irrelevantes do ponto de vista genético. A melanina é uma proteína que, como pigmento, estando presente na derme humana, converte a radiação ultravioleta em calor inofensivo, exercendo, assim, uma função foto-protetora. A cor da pele, entre as populações humanas, é determinada pela quantidade de melanina na derme. E, dos cerca de 25.000 genes que compõem o genoma humano, não mais do que seis (0,024% da informação genética!) estão relacionados à produção de melanina. E o mesmo vale para outras variações morfológicas identificadas entre as populações humanas. Daí a conclusão óbvia da inexistência de qualquer fundamento biológico/genético para a discriminação e classificação dos homens a partir de variações quanto à cor da pele, textura do cabelo, desenho dos lábios etc.
Se examinadas pelo microscópio de biólogos e geneticistas, as variações morfológicas entre as populações humanas são desprezíveis, porém, quando identificadas a olho nu, elas são carregadas de significações. Aquela variação genética de 0,024% relacionada à produção de melanina pode influenciar de forma decisiva no acesso a bens, serviços públicos e a direitos humanos e sociais, e também na maneira como o indivíduo pode ser abordado por agentes do Estado como policiais e juízes (em 2020, no Brasil, uma juíza condenou um homem negro a 14 anos de prisão e anotou, em sua sentença, que o indivíduo era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça”).
Ou seja, embora não existam diferentes “raças” humanas do ponto de vista científico/biológico, elas se constituem em uma realidade histórica e social de importância decisiva para a trajetória de vida de milhões de pessoas, notadamente no Brasil, instituindo e organizando hierarquias de poder e de privilégios.
III
Em 31 de outubro de 1970, equipes das forças de repressão da ditadura militar se dirigiram até a redação do jornal semanal O Pasquim, no Rio de Janeiro, e levaram, presos, 11 jornalistas (na verdade, quase todos os jornalistas da equipe da redação que estavam na sede do jornal no momento da batida policial). O motivo imediato da ação policial foi uma charge de Jaguar publicada na edição daquela semana e construída sobre o célebre quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, que trazia um balão de diálogo sobre a figura de D. Pedro com a frase: “Eu quero mocotó!!” Para as forças da repressão, era um ato desonroso frente a um símbolo pátrio. Foram para a cadeia, dentre outros, Tarso de Castro, Jaguar, Paulo Francis, Ziraldo e Sérgio Cabral (não confundir com Sérgio Cabral Filho).
O Pasquim, criado no ano anterior, incomodava profundamente os generais e agentes da ditadura. Embora tivesse o formato de um jornal, se assemelhava, em conteúdo e periodicidade, mais com as revistas semanais, com muitas colunas autorais e críticas culturais plenas de ironia, deboche e referências cifradas à realidade política do Brasil à época de Médici. Havia um interesse evidente, por parte dos aparatos do Estado, em sufocar o semanário. O jornal foi proibido de noticiar a prisão de seus profissionais e a ação policial que, esperava-se, deveria resultar em uma curta detenção, em função da futilidade da acusação, foi se prolongando de forma preocupante. A lógica da repressão era óbvia: sem jornalistas, não haveria novas edições do jornal; sem novas edições, não haveria leitores; sem leitores, estaria extinto o próprio jornal.
Mas O Pasquim resistiu. Os editores que se safaram da prisão em massa no final de outubro – Millôr Fernandes, Henfil, Miguel Paiva e outros – não tiveram muitas dificuldades em arregimentar um círculo de colaboradores que conseguiu manter o jornal em circulação até a libertação da equipe, mais de três meses depois, em fevereiro de 1971. Dentre estes colaboradores estavam artistas e literatos como Chico Buarque, Glauber Rocha e Carlos Drummond de Andrade.
A história do “Eu quero mocotó!!”, porém, envolvia mais do que uma acusação de desonra a um símbolo pátrio. A equipe de redatores d’O Pasquim era marcada pela habilidade e sagacidade em tratar dos temas mais pungentes e dramáticos da realidade brasileira de forma desconcertante e jocosa. A cada semana, o jornal trazia uma frase irônica, que aparentava ser uma espécie de bordão, mas se renovava a cada novo exemplar do semanário, logo abaixo do logotipo: “quem é vivo sempre desaparece”, “tesoura sim, alicate não”, “Pasquim – um folião no velório” são apenas alguns exemplos da apresentação das edições, referindo-se aos desaparecidos políticos, à censura (tesoura), à tortura (alicate), e ao terror (velório). Na verdade, o “Eu quero mocotó!!” remetia a um episódio de autoritarismo e racismo, também ocorrido no Festival Internacional da Canção da Globo, em 1970, o mesmo que foi marcado pela exibição do orgulho negro de Tony Tornado.
Jorge Ben havia composto uma música, Eu quero mocotó, com uma letra ainda mais banal do que BR-3, que brincava com uma gíria carioca (“mocotó”) para designar os joelhos das moças que, em tempos de difusão das minissaias, ousavam expor suas pernas em público.
Jorge Ben ofereceu esta música para ser gravada por Wilson Simonal, que estava longe de ser um artista “perigoso” para a ditadura (dois anos depois, em 1972, ele seria exposto como íntimo de delegados e policiais na troca de informações e de favores). Mas, por algum motivo, Simonal resolveu não gravar a música e a ofereceu para seu amigo Erlon Chaves, que também não tinha nem um resquício das angústias políticas e sociais de um Chico Buarque, Geraldo Vandré ou Taiguara.
Erlon Chaves era um músico experiente, maestro respeitado que, nos anos anteriores, se especializara em reger as orquestras que acompanhavam os músicos nos festivais. Com a oferta de Jorge Ben e de Wilson Simonal, viu a chance de, por uma vez, sair do fosso reservado às orquestras e montar um espetáculo para ele mesmo, e fez da apresentação de Eu quero mocotó um grande evento, inspirado nos musicais americanos em que a apresentação musical era acompanhada por muita dança e vários figurantes.
Na mesma noite da apresentação de Tony Tornado, Erlon Chaves encheu o palco de mulheres brancas, muitas loiras, com maiôs em tons assemelhados à sua cor de pele, que dançavam e também abraçavam e beijavam o músico. Nenhum problema se ele fosse branco como Abelardo Barbosa (o Chacrinha) ou como Osvaldo Sargentelli, que gostavam de ser beijados em público por “suas” chacretes e suas mulatas. Mas Erlon era negro, como Tony Tornado.
Resultado: Erlon também foi detido logo depois do festival e só foi liberado dias depois. Mais à frente, ainda em 1970, foi preso novamente, e permaneceu alguns meses na cadeia. Quando foi solto, nesta segunda vez, foi proibido de exercer atividades profissionais em todo o Brasil, o que, para ele, era um duro golpe – financeiro e pessoal. Passou a ter problemas de saúde e, três anos depois, morreu de infarto, quando estava perto de completar 41 anos.
Ao colocar, na capa de sua edição após o festival, a expressão “Eu quero mocotó!!”, os redatores d’O Pasquim queriam que não passasse despercebido mais aquela demonstração de racismo e de hiprocrisia moral que unia os homens de bem da época e os generais que, à frente do governo ditatorial, conduziam o país com mão de ferro.
IV
Desde o início da República, o Estado brasileiro procurou afirmar um discurso político baseado em ideais de autonomia, liberdade e progresso. Tais ideais, no entanto, tinham como foco o Estado, ou, na melhor das hipóteses, a nação, em abstrato. Pois este mesmo Estado Republicano mostrava enormes dificuldades em divisar ideais de autonomia, liberdade e cidadania para os homens e mulheres que compunham sua população – majoritariamente composta por pobres, negros e mestiços.
Nas primeiras décadas da República, a ideia de que as “raças” (brancos, negros e ameríndios) correspondiam a diferentes estágios da evolução humana era preponderante na ciência e na política. Nina Rodrigues e Euclides da Cunha jamais se acanharam em classificar os povos que deram origem à população brasileira em “raças superiores” e “raças inferiores” e, também por várias vezes, lamentaram os efeitos da miscigenação na conformação desta população. Tratando das manifestações religiosas do século XIX nos sertões nordestinos (notadamente Pedra Bonita e Canudos), ambos enfatizaram a “tendência sanguinária” e a “mais selvagem ausência de piedade” que marcam “as raças inferiores ou seus descendentes diretos que constituem as populações misturadas”.
No século XX, a afirmação desta hierarquia valorativa das raças e dos efeitos deletérios da miscigenação foi sendo, paulatinamente, substituída por outros enunciados identificadores da população brasileira. Em diferentes autores, e com diferentes significados, o termo “democracia racial” passou a ser evocado como forma de salientar um supostamente peculiar arranjo dos grupos populacionais que deram origem à nação brasileira.
No geral, as teses da “democracia racial” partiam de algumas premissas comprováveis empiricamente, mas redundavam em conclusões que foram, posteriormente, fortemente questionadas no âmbito da produção acadêmica (sobretudo a partir dos estudos de Florestan Fernandes), de alguns ramos da atividade artística (no Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, por exemplo), da mobilização organizada de populações negras e, somente muito tardiamente, das políticas públicas de promoção e emancipação social.
Curiosamente, no que se refere à música popular, a denúncia do engodo da “democracia racial” veio a aparecer com maior relevo apenas a partir da década de 1970. Isso apesar da presença da população negra nesses espaços ser muito maior – em número de indivíduos envolvidos e também quanto à origem de temas e às ocasiões de performance – quando comparada, por exemplo, ao teatro.
A tese da “democracia racial”, em autores como Gilberto Freyre e Cassiano Ricardo, teve o mérito de afastar, dos debates sobre a identidade nacional, a abordagem que atribuía à miscigenação étnico-racial um componente de degradação e inferioridade. Se a população brasileira ostentava três elementos originais – o branco, o índio e o negro –, estes elementos, de acordo com tais autores, ao contrário do que se verificava em outras nações, aqui se misturaram, se amalgamaram, se miscigenaram e fizeram desta mestiçagem sua caraterística essencial.
E, assim como brancos, índios e negros se misturaram, e não permaneceram em guetos ou bolsões populacionais específicos, também no Brasil, e igualmente de forma distinta da de outros países, o Estado não criou legislação específica que segregasse e distinguisse espaços públicos e direitos distintos para brancos e negros. Muitos autores lembraram que, no Brasil republicano, nunca houve lei que negasse a negros ou índios o direito do voto, nunca houve “escolas para brancos” e “escolas para negros”, nunca houve bebedouros, ônibus, bancos específicos para cada “raça”.
A partir destas premissas, o discurso da “democracia racial” afirmava que o Brasil lograra integrar de forma harmoniosa suas populações originais, construíra laços eficazes de integração entre a casa grande e a senzala, e fizera com que todos os senhores tivessem também um “pé na cozinha”.
E, como corolário de tais conclusões, os adeptos da “democracia racial”, individual ou institucionalmente, sustentaram que as tentativas de denúncia do aviltamento e da discriminação contra a população negra se constituíam ou em mera reação de “vitimismo” (pela qual indivíduos desprovidos de méritos buscavam justificar suas posições sociais inferiores por uma “falsa” discriminação de cor) ou em tentativa de importar para o Brasil conflitos raciais que tinham sua razão de ser em países que construíram barreiras entre suas diferentes comunidades étnicas, mas que soavam como absurdas em um local de miscigenação e harmonia como era nossa nação. Neste segundo caso, denunciar o racismo no Brasil equivaleria a tentar propagar no Brasil uma “guerra racial” que romperia nossa histórica convivência pacífica entre as “raças”.
As reações da ditadura contra Tony Tornado e Erlon Chaves mostraram, em primeiro lugar, que o autoritarismo político não assume apenas uma face (a “política” ou a “econômica”), mas trata de impor suas determinações no campo dos costumes, da moral, das relações étnicas etc. E, em segundo lugar, evidenciaram, de forma cabal, a proposição de que a democracia racial brasileira continuaria a existir desde que os negros tivessem consciência de seu lugar, sem que fossem necessárias leis ou decretos para lembrá-los exatamente de qual seria este “seu lugar”.
V
Em 1964, Nara Leão, filha de uma família de classe média alta do Rio de Janeiro, ex-musa e anfitriã da bossa nova (já que o apartamento de seus pais, defronte à praia de Copacabana, serviu de local de refúgio e produção musical para Vinicius de Morais, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli etc.), àquela altura já enfadada dos banquinhos, barquinhos, cantinhos que povoavam as belas canções de seus antigos convidados, decidiu produzir um espetáculo musical dedicado a mostrar um Brasil para além da Avenida Atlântica. Assim, ela convidou dois músicos, ambos praticamente desprovidos de educação formal, para organizar um show que seria nomeado como Opinião e que estreou em 1964, pouco depois do golpe militar de março. Estes dois músicos eram Zé Keti, sambista dos morros cariocas, e João do Vale, maranhense que migrou para o Rio de Janeiro, onde viveu de pequenos bicos como ajudante de pedreiro até conseguir expor algumas de suas composições.
Zé Keti e João do Vale eram negros. E as canções que compuseram para o espetáculo, como Opinião (de Zé Keti) e Carcará (de João do Vale), se tornaram hinos de resistência contra ditadura. Embora o espetáculo tivesse se tornado uma peça de denúncia contra a situação social do país no início da ditadura, nenhuma das canções compostas pelos dois artistas negros tratavam de discriminação racial, de racismo ou de qualquer forma específica de agressão às populações negras.
Nem a música popular dos morros cariocas, nem a música popular nordestina, embora produzidas e executadas majoritariamente por negros, tinha por hábito expor as agruras derivadas da cor da pele; elas tratavam sim, da denúncia “social”, das condições de vida dos habitantes do morro ou dos sertões nordestinos, mas tais habitantes raramente eram referidos por sua cor.
Em A voz do morro, Zé Keti se apresentava como o porta-voz de milhões de habitantes dos morros e terreiros cariocas, reivindicava o reconhecimento do valor destes habitantes, mas jamais os apresentava como “negros”:
Eu sou o samba
a voz do morro
sou eu mesmo sim senhor.
Quero mostrar
ao mundo que tenho valor.
Eu sou o rei dos terreiros
Eu sou o samba
sou natural
daqui do Rio de Janeiro.
Sou eu quem levo a alegria
para milhões
de corações brasileiros
As raras referências específicas à cor dos cariocas do morro e dos nordestinos, quando presentes nas canções do Opinião, por vezes reproduziam dizeres pejorativos e preconceituosos, como os ataques do cantador Cego Aderaldo fazendo referencia à cor de seu oponente Zé Pretinho, ou zombarias como “preto não entra no céu / nem que seja rezador / preto cabelo de espinho / vai espetar nosso Senhor”.
No ano seguinte ao Opinião, o grupo de teatro Arena montou o espetáculo Arena conta Zumbi, com texto de Gianfrancesco Guarnieri, direção de Augusto Boal e trilha sonora de Edu Lobo e Ruy Guerra, peça que teve uma carreira de muito sucesso, permanecendo mais de dois anos em cartaz no Brasil e com apresentações em diversos outros países. Mas, embora o texto se concentrasse em uma figura emblemática para o movimento negro brasileiro, o tema principal não era propriamente o negro, mas a luta e conquista da liberdade, tema que era tratado de forma ampla, a permitir diferentes apreensões a partir do cenário de ditadura militar. Tal perspectiva é evidente nos versos iniciais do texto:
O Arena conta a história
pra você ouvir gostoso,
quem gostar nos dê a mão
e quem não, tem outro gozo
Histórias de gente negra
da luta pela razão,
que se parece ao presente
pela verdade em questão,
pois se trata de uma luta
muito linda na verdade:
é luta que vence os tempos,
luta pela liberdade!
E, logo após a canção de Zambi no açoite, ainda no início da peça, um texto recitado explicitava ainda mais o foco do espetáculo: um manifesto em defesa da luta pela liberdade de toda a humanidade, não a discussão da luta específica do povo negro brasileiro em favor de sua emancipação:
O número de mortos na campanha de Palmares – que durou cerca de um século – é insignificante diante do número de mortos que se avolumam, ano a ano, na campanha incessante dos que lutam pela liberdade. Ao contar Zambi prestamos uma homenagem a todos aqueles que, através dos tempos, dignificam o ser humano, empenhados na conquista de uma terra da amizade onde o homem ajuda o homem.
Na mesma linha, algumas canções na década de 1970 celebraram o negro por sua dimensão heroica e sua luta pela liberdade, contra o cativeiro, como O mestre-sala dos mares, de Aldir Blanc e João Bosco, em homenagem ao “almirante negro” João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e Canto das três raças, de Paulo César Pinheiro. Esta última aborda, explicitamente, a luta das três raças pela liberdade (não apenas a dos negros): índios (“um lamento triste / sempre ecoou / desde que o índio guerreiro / foi pro cativeiro / e de lá cantou”), negros (“negro entoou / um canto de revolta pelos ares / no Quilombo dos Palmares / onde se refugiou”) e brancos (“fora a luta dos Inconfidentes / pela quebra das correntes / nada adiantou”).
Curiosamente, uma das primeiras canções a tratar especificamente da situação do negro no Brasil, em denúncia a uma situação de discriminação e preconceito, foi apresentada por um compositor tido por descompromissado, um tanto finório e muito próximo de pessoas e ideias identificadas com a manutenção do status quo: Wilson Simonal.
Em 1967, em parceria com Ronaldo Bôscoli, Simonal compôs Tributo a Martin Luther King, homenagem feita quando o pastor estava vivo e atuante (ele seria assassinado um ano depois, em Memphis, EUA), líder dos movimentos pela conquista de direitos civis para os negros norte-americanos. Quando apresentou esta canção, Simonal a dedicou a seu filho, então com 3 anos, “esperando que no futuro ele não encontre nunca aqueles problemas que eu encontrei, e tenho às vezes encontrado, apesar de me chamar Wilson Simonal de Castro”, referindo-se evidentemente às barreiras que os defensores da “democracia racial” brasileira se negavam a admitir e que impunham inúmeros obstáculos à afirmação da dignidade cidadã de negros e negras brasileiros.
Chama a atenção a perspectiva instrumental que Simonal, contrariando muito do que disse na continuação de sua carreira, atribui à sua música (“com uma canção também se luta irmão”) e a expectativa otimista de que uma breve luta traria a vitória e a conquista de direitos e dignidade para os negros (“o que te peço é luta sim, luta mais / que a luta está no fim”).
Sim, sou um negro de cor
meu irmão de minha cor
o que te peço é luta, sim, luta mais
que a luta está no fim.
Cada negro que for, mais um negro virá
Para lutar com sangue ou não.
Com uma canção também se luta irmão
ouvir minha voz, lutar por nós
Luta negra demais é lutar pela paz,
luta negra demais para sermos iguais.
Não deixa de ser sintomático o fato de que, para se falar, na música, de racismo no Brasil, tenha sido necessário recorrer a referenciais estrangeiros e, neste caso, especificamente, norte-americanos. Como adiantamos, quando Tony Tornado subiu no palco do Maracanãzinho para exibir seu corpo negro de forma orgulhosa, ele tinha uma experiência vivida nos Estados Unidos, onde conviveu com negros em luta pela afirmação de seus direitos sociais e políticos.
Esta influência americana também se faria notar na canção de Jorge Ben, Negro é lindo, de 1971, cujo título remete, obviamente, ao lema Black is beautiful, repetido pelos adeptos do poder negro americanos. A canção de Jorge Ben não faz referência a sangue e nem à luta, como fez Simonal, sequer interpela os brancos, tomando como interlocutor Deus, a quem pede que “me ajude / a ver meu filho / nascer e crescer / e ser um campeão / sem prejudicar ninguém”.
Black is beautiful, assim mesmo, em inglês, foi outra canção, também de 1971, que incomodou ao tratar explicitamente dos “homens de cor”. Curioso que, nos EUA, black is beautiful era um lema repetido pelos negros, como forma de afirmar um sentimento de orgulho e empoderamento. Na canção brasileira, porém, escrita por dois compositores brancos (os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), sugere-se um eu lírico feminino e branco (o “branco” é evidente, pois este “eu” deseja um homem de cor “que se integre no meu sangue europeu”). Ou seja, é uma mulher branca que considera os negros beautiful, e não os próprios negros.
Ainda assim, a canção, ao falar dos “brancos horríveis” da rua do Ouvidor e dos negros beautiful, perturbou profundamente setores do poder e seus acólitos na imprensa, como mostra uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, em julho de 1971, na qual a colunista, indignada, pede que os brasileiros se atentem ao conteúdo de agressividade oculto por detrás do lírico black is beautiful e insiste em afirmar o perigo em transpor para o Brasil ideias de confronto entre raças quando, em nosso país, “não há racismo” e “qualquer um que tente ferir os princípios de dignidade do preto, é passível de punição”:
Num país como os EE.UU. conturbado pelos conflitos raciais crescentes pode-se admitir a luta e o confronto de posições negras e brancas em seu meio social.
Lá a música quando é negra, é essencialmente negra. Fala de um mundo negro, onde o negro é líder, senhor absoluto, nem sequer se cogita em exaltar ou atacar o branco.
[…]
Tôda a pulsação do Harlem propaga-se com força na música negra, através dos “slogans” “Black is beautiful”, tão “beautiful” que branco algum que preze sua vida permanece ali depois da 6 da tarde.
O negro só fala e se interessa pela vida negra, pelo amor negro e quando um mais arrojado elege um amor branco os odios recrudescem e, no caso, não há vantagem alguma em se ser negro ou branco em tal comunidade.
A lei brasileira sôbre racismo é explicita e rigorosa. A verdade é que não há racismo no Brasil e qualquer um que tente ferir os principios de dignidade do preto, é passivel de punição.
[…]
Com exceção de um ou dois porteiros de hotel, deste ou daquele gerente bossal de buate que já barraram a entrada de algumas pessoas em suas casas por serem negras, não se pode falar sequer em racismo aqui.
Entretanto, parece-nos que há gente interessada ou por má intenção, ou por imbecilidade, a fomentar a luta racial no Brasil. Acaba de ser lançada propositadamente a causar polemicas, um tipo de música que vai deixar muita gente falando sozinha. Trata-se de “Black Is Beautiful”, o “slogan” do cartãozinho de autoria de Marcos e Paulo Sergio Valle, que exalta o negro e picha “os brancos horríveis da rua do Ouvidor”. Ellis Regina, aos berros, apela na interpretação.
VI
Vários textos que tratam de identidade étnica ressaltam que toda identidade é relacional e contingente. Nessa perspectiva, branco e negro existem, basicamente, em relação um ao outro. No continente africano de um milênio atrás faria pouco sentido afirmar-se negro. E, vários estudos indicam, afirmar uma dada identidade depende também de variáveis como idade (no caso dos negros, jovens tendem a ser afirmar negros em maior proporção do que adultos ou idosos), gênero (mais homens se dizem negros do que mulheres), renda (negros mais ricos tendem a se assumir negros mais do que pobres), escolaridade (quanto maior a escolarização, maior, proporcionalmente, o número de negros que assim se afirmam), e, especialmente, sociabilidade (pessoas integradas em redes de sociabilidade mais efetivas tendem a ser mais positivos na afirmação de suas identidades étnicas).
As canções da década de 1970 que ousaram tratar da questão racial negra não chegaram a interpelar de forma explícita o polo oposto/complementar da relação que fundamenta a afirmação da identidade negra, o dos brancos.
Isto mudaria em 1982, quando Sandra Sá gravou Olhos coloridos. O autor da canção, Macau, era morador da Cruzada São Sebastião, região do Leblon, comunidade criada a partir de moradores desalojados da antiga Favela da Praia do Pinto. Ao imaginar um interlocutor bem terreno (não o Senhor, como Jorge Ben), identificado apenas como “você”, a canção deixa claro tratar-se do polo oposto ao negro: “você ri da minha roupa / você ri do meu cabelo / você ri da minha pele / você ri do meu sorriso”.
A rigor, a canção nem apresentava uma postura agressiva de denúncia da discriminação racial, se concentrando na cobrança das promessas assumidas pela teoria da “democracia racial”, àquela altura com mais de cinquenta anos de enunciação: “a verdade é que você / (todo brasileiro tem!) / tem sangue crioulo / tem cabelo duro / sarará crioulo”. Se todos somos mestiços, como dizia Gilberto Freyre, por que alguns têm mais direitos e privilegiados do que outros? Por que alguns são colocados num camburão antes mesmo de qualquer oportunidade de demonstração de suas aptidões e capacidades?
Por outro lado, ao se inserir na linha da afirmação da miscigenação essencial da população brasileira, a postura defendida na canção arriscava conduzir a uma aporia: se “todo brasileiro” tem sangue crioulo e cabelo duro, por que insistir na construção de um discurso de afirmação negra?
Esta mesma postura de tentativa de diluição da dicotomia branco/negro em favor de uma percepção mais genérica da miscigenação também estaria presente em uma canção de André Abujamra, de 1995. A letra de Alma não tem cor busca elidir a questão da cor da pele em favor de uma postura de valorização da alma, que seria múltipla, colorida, multicor, “azul, amarelo, verde, verdinho, marrom”.
O problema é que os olhos de policiais, seguranças, promotores e juízes ainda não adquiriram a capacidade de enxergar a alma dos indivíduos, e continuam a se concentrar na pele, nos cabelos, nos lábios, nas roupas, no local de moradia…
Neste sentido, muito diferente foi a postura de Chico César, com Respeitem meus cabelos, brancos, de 2002.
Respeitem meus cabelos, brancos.
Chegou a hora de falar
vamos ser francos,
pois quando um preto fala
o branco cala ou deixa a sala
com veludo nos tamancos.
Cabelo veio da África
junto com meus santos.
Benguelas, zulus, gêges,
rebolos, bundos, bantos,
batuques, toques, mandingas,
danças, tranças, cantos.
Respeitem meus cabelos, brancos.
Se eu quero pixaim, deixa
se eu quero enrolar, deixa
se eu quero colorir, deixa
se eu quero assanhar, deixa
deixa, deixa, a madeixa balançar.
O eu lírico não apenas se dirige ao polo oposto do negro, mas o interpela no imperativo (“respeitem”), exige seu direito de fala, ordena que o branco se cale e ouça (“pois quando o preto fala / o branco cala ou deixa a sala”). Tony Tornado não ousaria tanto em 1970. E, mais, Chico César explicita tudo o que o cabelo negro carrega em significações culturais e históricas: significações étnicas (benguelas, zulus, gêges, rebolos), linguísticas (bundos, bantos), religiosas (santos, mandingas), musicais (batuques, danças, cantos) e estéticas (tranças).
Parte 2
Dentre os compositores que tornaram a expressão “MPB – Música Popular Brasileira” sinônimo de rigor composicional, tanto no referente à música como às letras, vale destacar algumas canções de quatro autores que, por diferentes motivações e de diferentes formas, abordaram a temática do negro e do racismo na sociedade brasileira: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque.
lourdes
texto claro, apropriado para uma reflexão sobre o caminhar da população brsileira rumo a aceitação de suas diferenças que a tornam especial, justamente, por ser diferente, plural em todos os aspectos mas que ainda tem um longo caminho a percorrer no sentido dos direitos humanos iguais para todos independente do quanto tenha de melanina na sua pele.
estes escritos estão me ajudando a conhecer mais o povo brasileiro.
parabens, Luis.