Dentre os compositores que tornaram a expressão “MPB – Música Popular Brasileira” sinônimo de rigor composicional, tanto no referente à música como às letras, vale destacar algumas canções de quatro autores que, por diferentes motivações e de diferentes formas, abordaram a temática do negro e do racismo na sociedade brasileira: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque.
VII
Embora se apresente como mineiro orgulhoso, a ponto de revelar alegria pelo fato de as letras iniciais de seu nome e sobrenome remeterem ao estado (MIlton NAScimento = MINAS = Minas Gerais), Milton, na verdade, é carioca de nascimento. Sua mãe biológica, Maria do Carmo Nascimento, era empregada doméstica, moradora da favela da Tijuca, e registrou seu filho como mãe solteira. Maria do Carmo, porém, faleceu quando Milton contava com apenas 3 anos de idade e este passou a ser criado por sua avó, também empregada doméstica.
A se fundamentar nas estatísticas sociais, Milton, negro, órfão, pobre, favelado, poderia ter se tornado mais um personagem anônimo a quem o Estado negaria condições de acesso à educação, à cultura e à cidadania. Um acaso, porém, lhe abriria novas possibilidades de inserção social e cultural. Sem ter com quem deixar o neto, a avó costumava levá-lo para acompanhá-la em seu trabalho de doméstica. E a filha da patroa para a qual trabalhava sua avó, recém-casada, com dificuldades para engravidar, apesar de se submeter a diferentes tratamentos médicos, terminou por se afeiçoar àquele garoto em quem divisava um temperamento tímido e olhos extremamente tristes.
Lília Campos que, junto com o marido Josino, iria adotar legalmente Milton como filho, era professora de música, tendo, inclusive, estudado algum tempo com Villa-Lobos. Por motivos profissionais, o casal Josino-Lília precisou se mudar para a cidade de Três Pontas e, assim, Milton começou a se tornar mineiro. O casal ainda adotaria mais dois filhos, já em Minas, e, após várias tentativas, teriam uma filha biológica, completando a família com os quatro irmãos. Não era o caso de uma família abastada, mas suficientemente estruturada para assegurar educação para todos os filhos. Assim, aos 20 anos, Milton deixou Três Pontas e mudou-se para Belo Horizonte, para ingressar na Universidade.
Como aluno de Economia, Milton nada registrou de brilhante, mas como frequentador do bairro boêmio de Santa Tereza, seu talento musical, sua voz e seu temperamento afetuoso lhe permitiram a inserção em diferentes círculos de amigos dedicados à música, à literatura e aos debates sobre a sociedade brasileira.
Depois de tentar a sorte como músico em Belo Horizonte e em São Paulo, Milton se tornaria conhecido a partir de sua participação no Festival Internacional da Canção de 1967, promovido pela TV Globo. Nesta competição, Milton conseguiu classificar três composições suas: Maria, minha fé, Morro velho e Travessia. Esta última, em parceria com seu amigo Fernando Brant, seria classificada, na final, em 2º lugar, tendo Milton garantido a premiação de melhor intérprete no festival.
Morro velho parece se configurar em uma reflexão do músico, transposta para um ambiente rural, em torno de sua própria história. Como um dos protagonistas da canção, Milton era negro, filho de empregado, e convivia com os filhos e pessoas próximas do patrão de sua avó. Mas, em Morro Velho, a possibilidade de integração entre negros e brancos vai se extinguindo à medida em que, com o avançar do tempo, a ordem social discriminatória e racista impõe o lugar e as responsabilidades de brancos e negros. Assim, o menino branco da canção se muda para a cidade grande, volta doutor, casado e senhor. E o menino negro permanece na terra, “já não brinca, mas trabalha”, ou seja, agora irá trabalhar para o seu antigo amigo de brincadeiras:
Filho de branco e do preto
correndo pela estrada atrás de passarinho
pela plantação adentro
crescendo os dois meninos, sempre pequeninos.
[…]
Filho do sinhô vai embora,
tempo de estudos na cidade grande.
Parte, tem os olhos tristes
deixando o companheiro na estação distante.
“Não me esqueça amigo, eu vou voltar”.
Some longe o trenzinho ao deus-dará.
Quando volta já é outro.
Trouxe até sinhá-mocinha para apresentar.
Linda como a luz da lua
que em lugar nenhum rebrilha como lá.
Já tem nome de doutor
e agora na fazenda é quem vai mandar
e seu velho camarada
já não brinca, mas trabalha
Na década de 1970, Milton expressaria, em diferentes canções, suas reflexões em torno da ditadura e do autoritarismo no Brasil, associando-os a semelhantes realidades de violência então vigentes em outros países da América do Sul, como o Chile, a Argentina e o Uruguai. Assim, por exemplo, Canto latino, de 1970, em parceria com Ruy Guerra, manifestava sua reflexão em torno dos movimentos de luta armada contra as ditaduras no continente:
A primavera que espero
por ti, irmão e hermano,
só brota em ponta de cano
em brilho de punhal duro
brota em guerra e maravilha
na hora, dia e futuro
da espera, virá…
Já San Vicente, de 1972, parceria com Fernando Brant, tratava de um fictício país latino-americano em que “negro” remetia não à identidade étnica, mas às sombras da noite da violência e do arbítrio (daí o verso: “e o que era negro anoiteceu”) e às ameaças de morte e assassinato (“um sabor de vidro e corte”).
As horas não se contavam
e o que era negro anoiteceu.
Enquanto se esperava
eu estava em San Vicente
enquanto acontecia
eu estava em San Vicente.
Coração americano,
um sabor de vidro e corte.
Esta preocupação de Milton em pensar o Brasil a partir de seus vínculos com a América Latina o aproximou de artistas como a argentina Mercedes Sosa e o cubano Pablo Milanés e o fez se interessar pela produção musical latino-americana. Assim, acabou conhecendo o trabalho da chilena Violeta Parra, falecida em 1967, e que deixou um legado de várias canções recolhidas do que ela chamava de “folclore chileno”. Em 1978, em seu disco Clube da esquina 2, Milton gravou Casamiento de negros, uma destas canções de Vileta Parra, recolhida de uma comunidade negra do Chile, que narra um romance a partir da repetição dos termos “negro” e “negros”: negros eram os membro do casal, no casamento; negros eram os padrinhos, cunhados e sogros; negro era o padre que oficiou o casamento; negro era o manto sobre o qual se serviram iguarias; negro era o céu sob o qual descansaram; negro o carvão que acenderam para espantar o frio; negro era o emplastro de barro com que trataram a negra quando esta adoeceu; negro o caixão em que a encerraram quando morreu; negro também o velório da negra, desprovido de velas; negro o céu, nublado, quando ascendeu “la negrita”; negro, por fim, São Pedro, que a recebeu no céu.
Se ha formado un casamiento
todo cubierto de negros.
Negros novios y padriños
negros cuñados e suegros
y el cura que los casó
era de los mismos negros.
Cuando empezaron la fiesta
pusieron um mantel negro
luego llegaron al postre
se sirvieron higos secos
y se fueron a acostar
debajo de un cielo negro.
Y ya están las dos cabeças
de la negra con el negro.
Amanecieron con frio
tuvieron que prender fuego
carbón trajo la negrita
carbón que tambien es negro.
Algo le duele a la negra
vino el medico del pueblo
recetro emplasto de barro
pelo del barro mas negro
que le dieron a la negra
sumo de maqui del cerro.
Y ya murió la negrita
que pena para el pobre negro.
Y la fueran a enterrar
en cajon pintao de negro
no prendieron ni una vela
ay! que velorio mas negro.
Y ya partió la negrita
levitando para el cielo.
Era un dia muy nublado
todo se veia negro
le abrió la puerta San Pedro
que era de los mismos negros.
Sete anos depois, quando pareciam se dissipar as sombras das ditaduras latino-americanas, Milton voltou suas atenções para a África, “berço de meus pais”, na canção Lágrima do Sul. A letra trata de dois aspectos da história da África: do continente humilhado por outras potências, que roubaram e escravizaram seus filhos e, também, da permanência da vergonha e da escravidão no interior da própria África, referência ao regime do apartheid da África do Sul, que fez de Nelson Mandela, seu mais importante opositor, um símbolo mundial de resistência e luta pela liberdade negra. Em uma bela estrofe, Milton pede aos africanos que guardem o toque de seus tambores, guardem suas peles negras, quentes e meigas, seus corpos e seus suores, para a grande dança da alegria, que virá com mil asas de liberdade:
Reviver
tudo o que sofreu
porto de desesperança e lágrima.
Dor de solidão
reza pra teus Orixás
Guarda o toque do tambor
pra saudar tua beleza
na volta da razão
pele negra, quente e meiga
teu corpo e o suor
para a dança da alegria
e mil asas pra voar
que haverão de vir um dia.
E que chegue já, não demore não
hora de humanidade, de acordar
continente e mais
a canção segue a pedir por ti.
África, berço de meus pais
ouço a voz de seu lamento
de multidão
grade e escravidão
a vergonha dia a dia.
E o vento do teu sul
é semente de outra História
que já se repetiu
a aurora que esperamos.
E o homem não sentiu
que o fim dessa maldade
é o gás que gera o caos
é a marca da loucura.
África, em nome de Deus
cala a boca desse mundo
e caminha, até nunca mais
a canção segue a torcer por nós.
Acredito que a mais forte canção de Milton Nascimento em referência aos homens e mulheres negros e negras do Brasil seja Maria, Maria. Este julgamento talvez pareça estranho, pois se consolidou uma determinada leitura desta canção que a apreendeu como uma homenagem à força das mulheres, em geral, não como referência às mulheres negras, já que, na letra, não há qualquer menção explícita à cor de Maria.
A canção, mais uma parceira de Milton com Fernando Brant, este último responsável pela letra, tem quatro estrofes e, em todas elas, estão presentes versos que sugerem a visualização de Maria como uma mulher negra. Na primeira estrofe, os dois últimos versos dizem: “Uma mulher que merece viver e amar / como outra qualquer do planeta”. Fica claro que a canção não se refere, genericamente, às mulheres, mas sim às mulheres para as quais se interdita o direito de viver e amar, ou seja, às mulheres discriminadas, submetidas, colocadas em posição de sujeição.
A segunda estrofe inicia com “Maria, Maria / é o som, é a cor, é o suor”; não se fala em cor “negra”, mas a referência está implícita, ainda mais quando associada a “som” e a “suor”, à música e ao trabalho, que são marcas da presença negra na sociedade brasileira. A estrofe ainda termina com “uma gente que ri quando deve chorar / e não vive apenas aguenta”. Novamente, trata-se de mulheres que, em situação de sujeição, proibidas de construir suas vidas de forma autônoma, são capazes, ainda assim, de expressar alegria, rir e não chorar.
A terceira estrofe é também repleta de sentidos que remetem à identidade negra:
Mas é preciso ter força
é preciso ter raça
é preciso ter gana sempre.
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
mistura a dor e a alegria.
Assim como na estrofe anterior, quando se fala em “cor”, aqui se fala em “raça”. Seria ainda preciso acrescentar o adjetivo – “negra”? Mais: Maria “traz no corpo a marca”. Se a canção não trata de todas as mulheres, quem, dentre as mulheres discriminadas, traz no corpo a marca de sua identidade? Como exigir mais explicitação?
Porém a última estrofe ainda fornece uma última “dica” para a identidade de Maria. Maria “traz no corpo a marca” de sua identidade. Mas não é em qualquer parte do corpo; é na sua pele: “quem traz na pele essa marca / possui a estranha mania / de ter fé na vida”. Só falta desenhar.
Recentemente, comemorando os 40 anos da gravação de Maria, Maria, Milton Nascimento promoveu o lançamento de uma espécie de clip oficial da canção. Nele, a identidade negra de Maria é preponderante, mas não exclusiva. Nas imagens, as mulheres pisam na terra, dançam e se abraçam, reforçando a percepção de uma canção que trata da união e empoderamento de todas as mulheres. Diante das possibilidades que a recepção a Maria, Maria ofereceu ao compositor, a de tratar sua canção como homenagem à força das mulheres, e não como discurso de identidade da mulher negra, acabou prevalecendo.
VIII
Gilberto Gil não precisou ser adotado por uma família de brancos para ter acesso à segurança alimentar, à educação e à saúde. Seu pai, José Gil Moreira, pertencia a uma rara classe média negra de Salvador, e formou-se médico pela antiga Escola de Medicina, ainda antes desta instituição se integrar a outras que dariam origem à atual Universidade Federal da Bahia.
Mas, se o Dr. Gil Moreira conseguiu romper os obstáculos da discriminação e do racismo para formar-se médico, tal sucesso não era suficiente. Há oitenta anos, sem um sistema público de saúde, um médico dependia de uma clientela particular, que era formada, basicamente, por brancos. E pouco brancos da elite de Salvador se mostravam dispostos a expor seus filhos e suas filhas para serem atendidos por um médico negro, não importasse sua competência.
Isto obrigou Gil Moreira a buscar trabalho no interior, onde, por falta de opções, um médico sempre era necessário. Assim, Gilberto Gil nasceu em Ituaçu, centro sul da Bahia, perto do acesso ao lado sul da Chapada Diamantina. Depois residiu alguns anos em Vitória da Conquista, onde seu pai se tornou, além de médico, vereador e vice-prefeito. Como era comum entre as famílias de posses no interior, Dr. Gil Moreira mandou seus filhos, após a conclusão do primário, para continuarem seus estudos na capital.
Depois de concluir seu curso de Administração de Empresas, na Ufba, em 1964, Gilberto Gil passou a morar em São Paulo, durante um tempo ainda indeciso entre seguir a carreira de administrador (era trainee da Gessy Lever) ou arriscar no aprofundamento de sua relação com a música. Com as oportunidades abertas pelos festivais da época, acabou se firmando como músico, principalmente após sua apresentação de Domingo no parque, no festival da Record de 1967.
Gil tratou de forma ampla o tema das condições de vida da população negra das grandes cidades brasileiras em Refavela, de 1977. Mais do que discutir preconceito e discriminação, Gil trata de exclusão social, mostrando como a organização urbana marginalizava a população negra pobre. A primeira estrofe escancara a discriminação e segregação espacial: para os negros acessarem a cidade “efervescente” e “a cintilar” era necessário, em primeiro lugar, “descer o morro”.
A refavela
revela aquela
que desce o morro e vem transar
o ambiente
efervescente
de uma cidade a cintilar.
A segunda estrofe aprofunda o tema das condições de moradia dos negros da periferia, que deixavam seus barracos para se instalar em conjuntos habitacionais precários, que, destituídos de escolas, comércio, lazer, acabam por se constituir em novas favelas – daí o título da canção e do disco: re-favela.
A refavela
revela o salto
que o preto pobre tenta dar
quando se arranca
do seu barraco
prum bloco do BNH
Mais adiante, Gil salienta as mudanças culturais desta população negra das re-favelas: as identidades tradicionais derivadas do samba agora convivem com outras práticas e identidades culturais, dos movimentos black e das “novas danças no salão”:
A refavela
revela o passo
com que caminha a geração
do black jovem
do black Rio
da nova dança no salão
Depois, uma bela estrofe em que Gil afirma seus laços com esta população negra pobre da periferia, sua alma e seu coração, sua gente e sua semente, estrofe que conclui com “Preta, Maria, Zé, João”, nomes de brasileiros negros, mas também os nomes de suas filhas, sua semente, Preta e Maria.
A refavela
revela o sonho
de minha alma, meu coração
de minha gente
minha semente
Preta, Maria, Zé, João
Em 1984, no disco Raça humana, Gil avançaria na discussão sobre preconceito e discriminação contra a população negra. Em A mão da limpeza, decidiu atacar diretamente os discursos que, sob o disfarce de “dito popular” ou “dito espirituoso”, tratam de perpetuar as práticas de rebaixamento moral e social dos negros.
O branco inventou que o negro
quando não suja na entrada
vai sujar na saída.
Imagina só!
Vai sujar na saída.
Imagina só!
Que mentira danada, ê!
Na verdade a mão escrava
passava a vida limpando
o que o branco sujava, ê!
Imagina só!
O que o branco sujava, ê!
Imagina só
o que o negro penava, ê!
Mesmo depois de abolida a escravidão
negra é a mão
de quem faz a limpeza.
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
negra é a mão
é a mão da pureza.
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
negra é a mão
nos preparando a mesa.
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
negra é a mão
de imaculada nobreza.
Na verdade, a mão escrava
passava a vida limpando
o que o branco sujava, ê!
Imagina só!
Êta branco sujão!
Não creio que haja necessidade de qualquer comentário a esta letra de Gil. Bastam apenas as suas palavras, publicadas em seu site oficial (www.gilbertogil.com.br):
Eu fiz A mão da limpeza para repor certas coisas no lugar e remendar um preconceito histórico contra os negros; para responder, no mesmo tom, um desaforo – o velho ditado: “negro, quando não suja na entrada, suja na saída”.
Ocorriam-me imagens de lavadeiras lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que eu passei no interior da Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas, espalhadas pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. Ocorria-me com muita nitidez o quão acionados e quão importantes são os negros para o trabalho de limpeza em geral que é feito na vida, e também com tamanha nitidez o quão sujadores são exatamente os que têm mais recursos, os mais ricos, os mais beneficiados da sociedade que, em sua grande maioria, correspondem à classe mais clara, a faixa mais branca.
Quer dizer, os negros são tão maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e acabam sendo acusados de ser os sujões. No fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente moral, além de física; o que se tenta considerar como sujo no negro é sua existência, sua pessoa, sua condição humana. Nesse sentido é muito mais terrível, e a música nem alcança a dimensão da crítica disso; ela apenas toca nisso.
Mas jogando a sujeira como algo produzido preferencialmente pelos brancos, ela faz a limpeza da nódoa que quiseram impor aos negros. E deixa implícita também uma condenação moral aos brancos. Ou seja: “Sujos na verdade são vocês, de corpo e alma; pelo menos, mais sujos que os negros vocês são. Há muito mais sujeira a apurar ao longo do processo da civilização de vocês do que da nossa.” É o que a música diz. E ela diz o que tem a dizer, com contundência e eficácia.
IX
Em 1993, Gilberto Gil e Caetano Veloso se uniram para produzir um disco, Tropicália 2, em homenagem aos 25 anos do álbum Tropicália ou Panis et Circerncis, que, originalmente, havia reunido, além dos dois baianos, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, Gal Costa, Capinam, Torquato Neto e Rogério Duprat.
Tropicália, além de título do álbum coletivo de 1968, era também uma canção de Caetano Veloso, presente em seu primeiro LP, gravado naquele mesmo ano. A canção trazia uma letra que arriscava uma apresentação da realidade brasileira a partir da justaposição de diferentes e contrastantes imagens, a sugerir justamente uma percepção do Brasil como território de diferentes culturas, diferentes tecnologias, mescla de tradições e modernidades, de nacional e importado. O Brasil era visto como uma colagem de aviões e paus de arara, de bang-bang faroeste e samba de tamborim, de magníficos monumentos no Planalto Central e crianças feias e mortas que estendiam a mão.
Tropicália 2 trouxe como canção de abertura Haiti, música de Gil e letra de Caetano, na qual os autores registraram, 25 anos depois, suas novas tentativas de síntese da realidade brasileira. E, nesta nova interpretação, a questão racial se apresenta como elemento central para compreensão do Brasil.
Na primeira parte da letra, é sugerido um observador posicionado em pleno largo do Pelourinho, em Salvador, em local elevado (no adro do grande sobrado que abriga a Fundação Casa de Jorge Amado), a visualizar a multidão que, num dia de festa e batuque, se aglomera na ladeira. Quase todas as descrições dos personagens são realizadas por meio de diferentes usos dos termos “pretos”, “brancos” e “quase”. E, frente a estes personagens, a posição do Estado é referenciada a partir de termos derivados do verbo “tratar” e do substantivo “cidadão”.
São mencionados, em primeiro lugar, os policiais, agentes da ordem, do Estado, “quase todos pretos”. E o que fazem os soldados no exercício de sua função? Distribuem “porrada na nuca de malandros”. E quem são estes malandros? São “malandros pretos”; outros são “ladrões mulatos”; outros malandros são “quase brancos”, porém, são tratados pelo Estado como se fossem pretos. Mas estes quase brancos, tratados como se fossem pretos, são também “pobres como pretos”; são quase brancos e, ao mesmo tempo, “quase pretos, de tão pobres”. Os versos finais desta primeira parte resumem, então, as características desta população perante o Estado, que a divide em: a) os pretos; b) os quase pretos (e são quase todos pretos) e; c) os quase brancos (que são quase pretos de tão pobres). E para todos estes, estão lá os policiais (que são quase todos pretos) para lembrar como pretos, quase pretos e quase brancos pobres são tratados pelo Estado (porrada na nuca).
Caetano e Gil fazem a sua leitura própria da miscigenação e da “democracia racial” à brasileira. A miscigenação produziu uma população de variadas matizes entre o branco e o preto; mas muito longe do que preconizava Gilberto Freyre, não resultou em uma distribuição democrática de prerrogativas e direitos sociais e políticos; pelo contrário, os pretos continuaram a ser estigmatizados pelo poder e pela ordem e este estigma se estendeu a todos os que, de “tão pobres” (não importa se “quase pretos” ou “quase brancos”), com eles se parecem e com eles convivem. Daí a conclusão a seguir revelada: “não importa nada”; não importa a beleza do sobrado de Jorge Amado, não importa a presença da TV, da matéria no Fantástico, não importa que Paul Simon (ou Michael Jackson) tenha ali, no Pelourinho, gravado um disco com os pretos do Olodum. “Não importa nada” porque ali, “ninguém”, “ninguém é cidadão”.
Quando você for convidado para subir no adro da Fundação Casa Jorge Amado
pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
dando porrada na nuca de malandros pretos
de ladrões mulatos
e outros quase brancos
tratados como pretos
só para mostrar aos outros quase pretos
(e são quase todos pretos)
e aos quase brancos pobres como pretos
como é que pretos, pobres e mulatos
e quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados.
E não importa se os olhos do mundo inteiro
possam estar por um momento voltados para o largo
onde os escravos eram castigados.
E hoje um batuque, um batuque
com a pureza de meninos uniformizados
de escola secundária em dia de parada
e a grandeza épica de um povo em formação,
nos atrai, nos deslumbra e estimula.
Não importa nada:
nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico,
nem o disco de Paul Simon.
Ninguém,
ninguém é cidadão.
Os versos seguintes refletem as condições e os personagens que fazem com que esta ordem de exclusão e discriminação se perpetue e se infiltre em vários setores da ordem social: fala-se do deputado que, para esta população de pretos, quase pretos e quase brancos, “defende a adoção da pena capital”, e do “venerável cardeal”, autoridades religiosas, que reconhecem “tanto espírito no feto e nenhum no marginal”. E, sobretudo, fala-se da indiferença, ou, pior, da silenciosa aprovação, do “silêncio sorridente”, entre os habitantes da maior cidade do país diante da chacina do Carandiru: 111 presos, “quase todos pretos / ou quase pretos / ou quase brancos quase pretos de tão pobres”. Afinal de contas: a) pobres são como “podres”, e; b) todos sabem como se tratam os pretos.
O Haiti é aqui; o Haiti não é aqui. O que nos aproxima e o que nos diferencia do Haiti, o país com a maior população de pobres e miseráveis da América Latina?
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos.
Mas presos são quase todos pretos
ou quase pretos
ou quase brancos quase pretos de tão pobres.
E pobres são como podres
e todos sabem como se tratam os pretos.
E quando você for dar uma volta no Caribe
e quando for trepar sem camisinha
e apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
pense no Haiti
reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
o Haiti não é aqui.
X
Chico Buarque de Hollanda vem de uma família de intelectuais e artistas. Três de suas irmãs se tornaram cantoras: Miúcha, Ana de Hollanda e Cristina Buarque. Sua primeira esposa, Marieta Severo, é atriz de talento reconhecido na TV, no teatro e no cinema brasileiros. Seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, foi um dos mais importantes historiadores brasileiros. Sua mãe, Maria Amélia Cesário, era pintora e pianista. Seu avô, por parte de pai, Cristóvão Buarque de Hollanda, nascido em Pernambuco, mudou-se para São Paulo no final do século XIX, onde fez carreira acadêmica, tendo sido um dos fundadores da Escola de Farmácia, que, mais tarde, se tornaria uma das instituições que daria origem à Universidade de São Paulo (USP).
A casa paterna/materna sempre foi um local de encontro de diplomatas, políticos, intelectuais, músicos, pintores, atores etc.
Músico e escritor de talento reconhecido em todo o mundo, Chico fez de suas peças musicais e literárias testemunhas de sua capacidade em dialogar com as tradições de gênero, em refletir tanto sobre a realidade social quanto sobre sentimentos e subjetividades, em tratar de coletivos sociais (operários, lavradores, camponeses) e também de individualidades específicas (prostitutas, travestis, homossexuais).
Embora mantivesse vínculos de amizade e parceria artística com vários negros, como Milton Nascimento, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, entre muitos outros, a temática do negro e do racismo no Brasil não foi das mais presentes na vasta produção de Chico Buarque. As peças teatrais Gota d’água e Ópera do malandro retratam personagens e ações ambientados nos morros cariocas, mas não trazem questões significativas para reflexão da temática racial. Igualmente, canções como O guri sugerem personagens negros, mas tal sugestão não é desenvolvida de forma aprofundada.
A questão racial se impôs a Chico Buarque não por opção política ou sociológica, mas sim por um episódio em sua vida familiar. Em 1993, sua filha Helena casou-se com o músico baiano, e negro, Antônio Carlos de Freitas, conhecido pelo nome artístico de Carlinhos Brown, e passou a morar em Salvador. A partir de 1995 vieram os netos, sendo o primeiro deles Francisco, homenagem ao avô, e depois Clara, Cecília e Leila, filho e filhas de Carlinhos e Helena.
Desde este casamento, Chico Buarque passou a ouvir com frequência referências ambíguas e irônicas de vizinhos de condomínio e de conhecidos das caminhadas e dos bares e restaurantes; referências que normalmente começavam com a pergunta provocativa: “E aí Chico, cadê o genro?”
Helena, Carlinhos e os filhos tiveram que deixar um apartamento, no bairro de classe média carioca da Gávea, que lhes havia sido reservado por Chico e Marieta: “ficou desagradável viver em um condomínio de classe média […] onde eles eram indesejados, onde eles eram agredidos”, disse Chico. Mais tarde, em uma entrevista de 2017, Marieta Severo expressou sua dor por saber que seu neto, “leva tapa de segurança, passa por situações constrangedoras, só por ser negro”.
Cinquenta anos depois de Wilson Simonal dedicar sua canção Tributo a Martin Luther King a seu filho, “esperando que no futuro ele não encontre nunca aqueles problemas que eu encontrei, e tenho às vezes encontrado”, Chico Buarque e Marieta Severo se descobriram vítimas do mesmo drama, incapazes de proteger seus familiares da violência do racismo e da discriminação.
Numa primeira reação, Chico Buarque lembrou a tese da miscigenação como marca da população brasileira, ou seja, que, a rigor, nenhum brasileiro, mesmo da elite, pode se pretender branco. Chico ainda foi irônico, ao afirmar que os brancos brasileiros somente sobreviveriam se a última branca, Xuxa, se casasse com o último branco, o goleiro de futebol Tafarel.
Mas a reação de Chico, e a réplica das pessoas às quais ele se dirigiu, somente serviu para demonstrar que, no início do século XXI, a elite brasileira se mostrava ainda mais intransigente e exclusivista do que sua correlata de sete décadas atrás. Se, na época de Gilberto Freyre, admitir a miscigenação poderia ser aceitável para a elite, desde que tal aceitação fosse útil para neutralizar discursos contestatórios à ordem baseados na identidade étnica, nos tempos recentes, as novas elites parecem não se importar em construir qualquer discurso que possa reunir, numa única identidade, a população brasileira, concentrando-se apenas na afirmação de suas distinções e de seus privilégios.
Em seu disco de 2011, intitulado simplesmente Chico, Chico Buarque apresentou a canção Sinhá, parceria com João Bosco.
A primeira parte da letra, mais extensa, narra uma sessão de tortura, comandada pelo próprio senhor, contra um de seus escravizados, acusado de espiar sua dona (a Sinhá) enquanto esta se banhava no açude. No começo, o cativo, apelando às divindades do senhor (“por Deus Nosso Senhor”), assegura que não esteve no açude, que não deixou a roça e, ainda, que sequer tem olhos sãos, capazes de divisar detalhes de um corpo ao longe:
Se a dona se banhou
eu não estava lá
por Deus Nosso Senhor
eu não olhei Sinhá.
Estava lá na roça,
sou de olhar ninguém.
Não tenho mais cobiça
nem enxergo bem.
Porém, os castigos se tornam mais violentos; por ordem do senhor, o negro é preso ao tronco. O cativo, então, apela à situação de superioridade social do senhor: já que tem tudo, inclusive pele branca e olhos azuis, por que se apraz em castigar os que só têm o seu trabalho?
Para que me pôr no tronco
para que me aleijar?
Eu juro a vosmecê
que nunca vi Sinhá.
Por que me faz tão mal
com olhos tão azuis?
Me benzo com o sinal
da Santa Cruz.
Com a continuidade da tortura, o escravizado muda sua versão; procura, em desespero, por uma nova narrativa que convença o senhor/algoz a deter os castigos. Admite que esteve no açude, mas estava em perseguição a uma sabiá, nem se atentou que a Sinhá por lá, despida, estava:
Eu só cheguei no açude
atrás da sabiá.
Olhava o arvoredo
eu não olhei Sinhá.
Se a dona se despiu
eu já andava além,
estava na moenda
estava para Xerém.
Por fim, cruel, o senhor conclui seus intentos: talha o corpo do cativo e fura seus olhos. Ao negro resta ainda apelar, abandonar seus santos iorubás e orar pela religião do senhor. Mas de nada adianta:
Por que talhar meu corpo?
Eu não olhei Sinhá.
Para que que vosmincê
meus olhos vai furar?
Eu choro em iorubá
mas oro por Jesus.
Para que que vassuncê
me tira a luz?
A segunda parte da letra, composta por uma única estrofe, trata da identidade do poeta/cantor narrador desta história, o próprio Chico Buarque, que se assume como um filho da miscigenação, herdeiro sarará de um nome e renome de brancos, com voz de pelourinho e ares de senhor, e que se compraz em imaginar a possibilidade de ser descendente de um escravo que se mostrou capaz de seduzir sua Sinhá.
E assim vai se encerrar
o conto de um cantor
com voz de pelourinho
e ares de senhor
cantor atormentado
herdeiro sarará
do nome e do renome
de um feroz senhor de engenho
e das mandingas de um escravo
que no engenho enfeitiçou Sinhá.
Parte 3
Paulinho Camafeu, Bobôco, Beto Jamaica e Betão, compositores atuantes em blocos afros de Salvador como o Ilê Aiyê e o Olodum, nunca tiveram formação musical ou informação literária comparáveis às que orientaram o labor poético-musical de Milton, Gil, Caetano ou Chico Buarque. Esta constatação, no entanto, não diminui a importância destes compositores em uma narrativa que pretenda tratar das figurações do negro na música brasileira.
(Continua em breve…)
Edna P S Gramari
Maravilhoso relato embalado pelo que há de melhor na música brasileira.
Reginaldo Santos Pereira
Uma bela imersão na nossa história para compreender/criticar as faces do racismo a partir da música popular brasileira e seus principais ícones. Parabéns, Luiz! Aguardamos o próximo capítulo…
Silvia Cristina Arantes de Souza
Suas histórias nos levam a novas viagens através das melodias, das letras e dos autores. Parabéns e obrigada! Já esperando a parte 3.
MARA REGINA DE MAGALHAES
Parabéns meu irmão