Da BR-3 às ladeiras do Pelourinho (parte 3, final): breves narrativas sobre o negro, raça e racismo na música brasileira

XI

Johann Emanuel Pohl, nascido em Viena no final do século XVIII, era um cientista (hoje poderíamos dizer ser uma mistura de médico, botânico, geólogo, além de desenhista) que, como servidor da Casa Real austríaca, veio para o Brasil em 1817 integrando uma missão derivada do casamento da arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria com o príncipe D. Pedro de Bragança, o futuro imperador D. Pedro I do Brasil e rei D. Pedro IV de Portugal e Algarves.

No Brasil, Johann Pohl decidiu empreender uma viagem pelo interior do país, que durou quatro anos, saindo do Rio de Janeiro, passando por Minas Gerais e chegando até a área que hoje corresponde ao Estado de Goiás. Nestas andanças, chamou-lhe a atenção a presença do negro africano escravizado, tanto nas atividades urbanas como rurais e, em particular, a sua obstinação em aproveitar cada pausa da extensa e intensa jornada de trabalho para dedicar-se a atividades de lazer e sociabilidade que ele anotou com os termos “batuque” e “batucada”. Pohl também registrou a obstinada, mas inútil, resistência das autoridades locais, laicas e religiosas, contra estas práticas “lascivas” e “indecentes” dos “selvagens” africanos:

Desde os primeiros tempos, os missionários combateram violentamente essa dança, por ser indecente. Nisso se distinguiram sobretudo os capuchinhos […] de Roma. Não conseguiram, porém, aboli-la, por ser apaixonadamente apreciada por todos os habitantes.

Estas mesmas música e dança dos negros africanos eram também designadas por outros termos, normalmente em função da diversidade de origem (se bantos ou sudaneses; se de Luanda, Benguela ou Mombaça; se de Cabo Verde ou da Mina) dos escravizados: lundu, samba, umbigada, coco, dança do tambor… Inúmeras fontes do século XIX registram o lamento dos brancos frente à persistência dos negros em, mesmo acossados pela fadiga e pela perspectiva de logo serem arrastados para o trabalho, tocar, cantar e dançar. Luís da Câmara Cascudo registrou as reclamações que ouvia, quando criança, dos mais velhos, nos momentos em que se reuniam pais, tios e avós para tratar das lides da roça e dos homens:

Impossível terminar um dia africano sem dança. Os velhos fazendeiros do Brasil recordavam a obstinação das festas escravas, na noite inteira, batendo nos ingonos, puxando as puítas, balançando o ganzá, insensíveis ao sono, à fadiga, às ameaças do trabalho próximo.

Ganzá (acima, à esquerda), Ingonos (à direita) e puítas (abaixo, à esquerda)

Quando se rendiam à impossibilidade de abolir o som e as danças dos batuques, os brancos das casas-grandes procuravam, ao menos, restringi-los a espaços específicos das fazendas e engenhos: a senzala e adjacências, jamais nos ambientes de habitação e circulação dos familiares do proprietário. Nos meios urbanos, os batuques aconteciam, de forma clandestina, nos terreiros de candomblé. Porém, sorrateiro, o batuque se insinuava nos ambientes brancos, quase sempre a partir da cozinha da casa-grande:

Batuque na cozinha
Sinhá num qué
por causa de um batuque
queimei meu pé

Afirmações excessivamente genéricas sobre características da música europeia ou da africana, no século XIX, são sempre arriscadas. Para começar, não é fácil precisar o quanto a música dos africanos do século XIX já não absorvia de influências derivadas do contato com os brancos europeus, e vice-versa. Além disso, generalizações, porque justamente focam o “geral”, tendem a ignorar detalhes que às vezes podem fazer muita diferença. De toda forma, em alguns momentos não há como fugir de generalizações.

Em linhas gerais, a estrutura harmônica e os instrumentos dela derivados, que se tornaram populares na música brasileira, se originaram das tradições europeias/ibéricas, assim como o canto de composições em versos que demonstravam uma complexa organização em termos de estrofação, métricas e rimas. Já na música africana, melodia, harmonia e letras para o canto se constituíam elementos de menor importância diante da preocupação com o ritmo e a percussão. Câmara Cascudo diz que

o que há de incalculável e poderoso na música brasileira, recebida de mão africana, é a valorização do ritmo, o ritmo antes de tudo, absorvente, sobrenatural, dominador. Todos os viajantes, naturalistas e etnógrafos africanistas celebraram o reino do tambor, de tamanhos, timbres e formas incontáveis, e disseram que o canto, o assunto e a melodia, é de efeito subalterno ante o ritmo reinador.

Em um de seus mais recentes romances, Sombras da água (título brasileiro para o original A espada e a azagaia), Mia Couto narra uma história de amor e paixão entre uma jovem nativa moçambicana e um sargento do exército português, durante as guerras de colonização de Portugal contra o Reino de Gaza, no século XIX, sul de Moçambique. Este improvável casal, a jovem negra moçambicana, Imani, e o soldado invasor e colonizador, Germano, serve para o escritor abordar diversos aspectos da vida e da cultura (modos de relação com os deuses, com os rios, com a morte etc.) a partir da ótica ora dos brancos, ora dos africanos.

O casal, acompanhado do pai e do irmão da jovem e de uma mulher branca, italiana, amiga de Germano, desce um rio em uma pequena embarcação em busca uma cidade com um posto médico que possa assegurar atendimento ao soldado português, que se encontra seriamente ferido. Nesta busca, o grupo para em uma pequena vila, onde encontram um outro casal improvável, composto por um padre católico, Rudolfo, e uma nativa feiticeira e sacerdotisa, Bibliana. Nesta vila, um estranho ritual é preparado para socorrer Germano, mesclando dança, música, palavras mágicas e o inusitado uso da Bíblia como pequeno instrumento de percussão, para escândalo da italiana Bianca:

De vestes coladas à pele, [a profetisa] foi rolando os olhos pelo vazio para, depois, balouçar o corpo numa estranha dança. Os passos foram-se tornando cada vez mais enérgicos até atingir o vigor das passadas militares. Contagiado pelo enlevo da mulher, o padre foi percutindo com as mãos sobre a capa de um volumoso livro.
– Que livro é esse?, perguntou Bianca.
Sem parar de marcar o compasso, o padre explicou que se tratava de uma Bíblia que os suíços tinham traduzido para as línguas nativas. […] Bianca reagiu tão agressivamente que a voz se esganiçou:
– O livro sagrado serve agora de tambor?
– A música é a língua materna de Deus, retorquiu Rudolfo.
Foi isso, acrescentou, que nem católicos nem protestantes entenderam: que em África os deuses dançam. E todos [católicos e protestantes] cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores. O sacerdote estava desde há muito tentando corrigir esse equívoco. Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos [a reflexão é de Imani], faríamos do corpo um tambor. Ou, mais grave ainda, percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra e, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro.

Ao gravar um samba clássico de Nelson Cavaquinho, A flor e o espinho, Maria Betânia inseriu a recitação de parte desta passagem de Mia Couto, a realçar as origens africanas do samba brasileiro.

XII

Diz o mito que o primeiro disco gravado no Brasil a trazer, como registro de indicação de gênero, o termo “samba”, foi o de Pelo telefone, em 1917, com crédito de autoria para Ernesto Santos, conhecido pelo apelido de Donga, carioca nascido em 1890 e que se fez músico e “sambista” na convivência das rodas na casa da lendária baiana Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida).

Outro mito diz que o uso do termo “escola de samba” para se referir a blocos carnavalescos no Rio de Janeiro teve início por volta de 1930, por obra de Ismael Silva, que reivindicava para o bairro do Estácio, e para o bloco Deixa Falar, a condição de “reduto de outro tipo de magistério, aquele no qual brilhariam os mestres do ritmo”.

Diversos pesquisadores já revisitaram estes mitos, indicando diferentes antecessores de Donga e de Ismael Silva. Porém, fato é que a primeira metade do século XX assinalava um inquestionável processo de assimilação do batuque africano ao que se pretendia definir como “música nacional”. Como sintetizou Lira Neto:

Tributário da grande diáspora africana, [o samba] soube sobreviver à gramática do chicote e da senzala. Nascido no saracoteio dos batuques rurais, adentrou a periferia dos grandes centros urbanos sem pedir licença. Iniciado nos terreiros de macumba, incorporou-se aos cortejos dos ranchos, blocos e cordões, numa simbiose perfeita com o Carnaval. Enfrentou preconceitos, ouviu desacatos, padeceu segregações. […]
Vendido e comprado na surdina, tratado como produto clandestino, aos poucos foi sendo envolvido pelos códigos e engrenagens do grande mercado. Ladino, chegou ao disco, ganhou o rádio, virou astro de cinema.
[…]
Nasceu maldito e cativo. Cresceu liberto de amarras.

Como símbolo da cultura brasileira, aos poucos, o samba deixou de ser predominantemente negro. Vinicius de Moraes já dizia que, embora “negro demais no coração”, o samba era “hoje branco na poesia”. Se o samba se desenvolveu, no século XX, em simbiose com o carnaval e terminou por se assimilar com o “nacional” e com a “brasilidade”, este movimento acarretou uma certa “desafricanização” do ritmo; o violão passou a ser um companheiro mais assíduo para um sambista do que os atabaques.

XIII

O bairro da Liberdade, em Salvador-BA, já foi o de maior população negra entre quaisquer outros bairros de qualquer cidade brasileira. Situado na parte Alta da cidade, porém social, econômica e etnicamente identificada com a Cidade Baixa, a Liberdade, mais do que simplesmente um bairro, sempre manteve um forte espírito de comunidade e identidade cultural, num fenômeno muito próximo com o que os cariocas vivenciavam quando chamavam a região da Gamboa, da Saúde e da área portuária como “Pequena África”.

Curuzu é uma área específica encravada na Liberdade, marcada pela ladeira de mesmo nome, com cerca de 1 km de extensão.

No Curuzu, em 01 de novembro de 1974, foi fundado o Bloco Afro Ilê Aiyê, com o objetivo inicial de organizar um cortejo para o carnaval do ano seguinte. O que poderia ser uma simples história de mais um dentre vários blocos de carnaval de Salvador, se tornou, entretanto, um capítulo especial da história da música negra e da história do negro na sociedade brasileira.

A primeira ousadia praticada pelo Ilê Ayiê foi de ordem étnico-política. O bloco se declarou exclusivo para negros; nenhum branco seria admitido para usar as vestes oficiais do bloco preparadas para o cortejo do carnaval.

O carnaval de Salvador, por esta época, estava amplamente associado à imagem e ao som dos trios elétricos. Dominando as ruas de Salvador desde a década de 1950, se tornaria célebre com a canção de Caetano Veloso, de 1969: “Atrás do trio elétrico / só não vai quem já morreu […]”.

Mas o carnaval dos trios e dos blocos a eles associados carregava uma nítida clivagem social e racial. O espaço “atrás do trio elétrico” era demarcado de forma clara; uma corda criava um espaço privativo, acessível somente aos que poderiam pagar pelos abadás oficiais e pelo privilégio de fazer da rua um território privado móvel. No espaço privado delimitado pelas cordas predominavam baianos e turistas de classe média e média alta. Segurando as cordas, para viabilizar o fenômeno de privatização do asfalto, e também fora das cordas, a população local, os nativos, os negro-mestiços de Salvador.

Foi contra esta segregação – não de direito e nem de estatuto, mas de fato e de pele – que o Ilê Aiyê se insurgiu. Sua proposta era realizar um cortejo que tivesse os negros como centro e finalidade. Buscava-se demarcar um território de dignidade e alegria para os negros excluídos (ou, no máximo, convidados como serviçais ou como população que poderia usufruir, “gratuitamente”, do som que se espalhava para além das cordas) da festa dos trios e seus blocos.

A reação do establishment (leia-se, principalmente, representantes do poder público, imprensa, empresários do turismo etc.) foi, evidentemente, de perplexidade e indignação com a ousadia da postura do Ilê. Após o cortejo do bloco, em seu primeiro desfile, em fevereiro de 1975, o principal jornal de Salvador – A Tarde – publicou uma matéria em que tratava o Ilê Aiyê como “bloco racista” e como “nota destoante” do belo carnaval da cidade, além de insinuar uma possível punição ao bloco (afinal, disse o jornal, racismo é crime no país) e indicar a necessidade de mudança de postura dos negros do Curuzu. Note-se também a abordagem típica da hipócrita defesa da “democracia racial” brasileira, ao indicar que, como no Brasil não existiria preconceito de raça, manifestações como a do Ilê somente poderiam ser explicadas por “imitação norte americana”, por grupos inimigos da ordem que insistiam em trazer para o país conflitos e divergências que somente tinham sentido em países estrangeiros.

BLOCO RACISTA – NOTA DESTOANTE


O Bloco Ilê Aiyê, apelidado de Bloco do Racismo, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte americana, revelando enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do Ilê Aiyê, todos de cor, chegaram até a gozação dos brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque oficial. Pela própria proibição existente no país contra o racismo é de esperar que os integrantes do Ilê voltem de outra maneira no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do instinto característica do carnaval.

O Ilê sempre enfrentou de forma altiva esta acusação de ser racista. Racismo, na lógica do bloco, significava usar a identidade racial do outro para atribuir inferioridade moral, incapacidade intelectual ou para justificar a negativa de direitos ou de trabalho, como historicamente fizeram os brancos ao tratarem os negros como vagabundos, lascivos e incapazes.

Ao negar espaço para os brancos, o Ilê não estava acusando os brancos de inferiores ou amorais; estava procurando criar um espaço próprio de afirmação da dignidade negra, espaço que era negado nos ambientes públicos – até mesmo no espaço mais público de todos, o do asfalto das ruas da cidade.

A música tema do primeiro desfile do Ilê Aiyê trazia o sugestivo título “Que bloco é esse?”, composição de um dos membros do bloco, Paulinho Camafeu. A composição deixa explícita a postura do grupo em modificar a autoimagem dos negros e mestiços de Salvador, em incentivá-los a afirmar seu valor e sua beleza perante os brancos. Mas, ao mesmo tempo em que se dirige aos negros, para encorajá-los, a letra da canção tem como destinatário explícito os brancos. O “você”, a quem são endereçados os versos iniciais (é o mundo negro / que viemos mostrar pra você”), é o branco, como se confirma na abertura da estrofe seguinte: “branco, se você soubesse […]”.

Que bloco é esse?
Eu quero saber
É o mundo negro
que viemos mostrar pra você

Branco, se você soubesse
o valor que preto tem
tu tomava banho de piche
ficava preto também

Eu não lhe ensino
minha malandragem
nem tampouco
minha filosofia,
quem dá luz a cego
é bengala branca e Santa Luzia

Somos crioulo doido
somos bem legal
temos cabelo duro
somos black power

Neste movimento de construção de um negro/negra consciente e orgulhoso/orgulhosa de sua negritude, a música do Ilê afastou-se dos instrumentos harmônicos que já predominavam no carnaval de Salvador (como a guitarra baiana de Dodô e Osmar) e procurou retomar a tradição da música percussiva africana. Em um certo sentido, uma tentativa de “reafricanizar” a música do carnaval de Salvador.

Assim, a música do Ilê, sem ignorar a tradição do samba urbano de Salvador, buscou enfatizar a batida do ijexá, originária dos terreiros de candomblé.

Todo o núcleo fundador do bloco era ligado, de alguma forma, aos terreiros de candomblé da Liberdade. Mãe Hilda de Jitolu, a principal liderança “espiritual” do Ilê, era ialorixá, filha de Oxum. Vovô, a liderança “executiva” do bloco, era filho biológico de Mãe Hilda, que faleceu em 2009. E praticamente todas as pessoas responsáveis pela composição das canções, pela organização das coreografias, pela confecção das roupas, pelo adorno dos cabelos, eram vinculadas aos terreiros.

A antropóloga Goli Guerreiro faz uma bela descrição do ritual que envolvia a saída do cortejo do Ilê:

A saída do bloco do Curuzu para o centro da cidade no sábado de carnaval recria um ritual inspirado no universo religioso, o padê (que já era praticado durante o carnaval pelo bloco Filhos de Gandhy desde 1949), momento em que uma das fundadoras do bloco, Mãe Hilda de Jitolu, mãe de Vovô, e que é mãe de santo, espalha pipocas na área e um “pó santo” preparado ritualmente em seu terreiro para alcançar harmonia, ao pé da ladeira, pedindo paz e proteção para seus filhos. Em seguida, solta pombos brancos – símbolos da paz – e todos fazem um minuto de silêncio, antes do rufar dos tambores. O breve ritual, para abrir os caminhos e reverenciar o orixá Exu, é a senha para a tradicional subida da ladeira do Curuzu.

Reverter e inverter a cultura hegemônica, que associava os traços da identidade negra a sentimentos negativos, buscando fazer desta identidade um fator de mobilização e de orgulho, sempre foi uma das prioridades do Ilê. Em 1979, Caetano Veloso iria compor Beleza Pura, explorando esta afirmação da beleza negra a partir do Curuzu e do Ilê. A canção fala da “moça preta do Curuzu”, e de outros bairros de predominância negra (como a Federação e a Boca do Rio), que se esmera não em alisar, mas em embelezar, com tranças, tramas, transas e conchas, os seus cabelos:

Moça preta do Curuzu
beleza pura
Federação
beleza pura
Boca do Rio
beleza pura
dinheiro não

Quando essa preta
começa a tratar do cabelo
é de se olhar
toda a trama da trança
a transa do cabelo.
Conchas do mar
ela manda buscar
pra botar no cabelo
toda minúcia
toda delícia.

Ao final, esta minúcia e delícia do cuidado com os cabelos se traduz não em dinheiro, mas em elegância, em cultura e em pele escura.

Não me amarra dinheiro não
mas elegância.
Não me amarra dinheiro não
mas a cultura.
Dinheiro não,
a pele escura.
Dinheiro não,
a carne dura

Num certo sentido, o Ilê Aiyê reinventou, nas terras da Bahia, a versão brasileira do black is beautiful americano (não por acaso, o nome originalmente proposto para o bloco era “Poder negro”, do qual o grupo abdicou para evitar maiores confrontos com a ordem legal-policial), como parece indicar a canção O mais belo dos belos, composição de Guiguio, Valter Farias e Adailton Poesia:

Quem é que sobe a ladeira do Curuzu?
E a coisa mais linda de se ver
é o Ilê Aiyê.
O mais belo dos belos
sou eu, sou eu.
Bata no peito mais forte
e diga: Eu sou Ilê!

Não me pegue não, não, não,
me deixe à vontade.
Não me pegue não, não, não,
me deixe à vontade.
Deixe eu curtir o Ilê,
o charme da Liberdade.
[…]
Quem não curte não sabe, negão
o que está perdendo.
É tanta felicidade
o Ilê Aiyê vem trazendo

A música do Ilê não se prestava – e nem se pretendia – a grandes sofisticações composicionais, de música e letra. Seu objetivo primordial era o de resgatar antigas tradições africanas, fazendo do ritmo o motivo para associação, reunião, celebração e autoafirmação.

XIV

Na esteira do movimento do Ilê, no bairro da Liberdade, os negros de outros territórios de Salvador também passaram a se organizar em blocos de cultura afro que organizavam um extenso calendário de atividades que culminava com o cortejo do carnaval. Assim, em 1979, no Pelourinho, surgiu o Olodum e, em Itapuã, o Malê Debalê; em 1980, no subúrbio ferroviário de Periperi, o Ara Ketu; em 1981, na Liberdade, o Muzenza.

Todos estes blocos tinham em comum a postura em favor de um certa “reafricanização” de sua música e de suas práticas culturais sem, entretanto, que isto significasse uma necessária “retradicionalização”. Ou seja, a ênfase na percussão e no ritmo ijexá poderiam conviver com referências tanto tradicionais como modernas da África. Assim, por exemplo, o Muzenza adotou como suas cores as da bandeira da Jamaica, e fez do reggae a principal referência musical do bloco. Da mesma forma, o Olodum tanto se ocupou em resgatar narrativas do passado africano, como buscou o diálogo com a música contemporânea de inspiração africana, dialogando inclusive com músicos como Paul Simon e Michael Jackson.

No carnaval de 1987, o Olodum marchou a partir do Pelourinho com uma canção de letra quilométrica, repleta de nomes de deuses, reis e locais do Egito antigo. A intenção era evidente: lembrar, aos brancos mas principalmente para os próprios negros da Bahia, que vários emblemas de grandeza da história humana, como a civilização dos faraós e suas pirâmides, eram realizações da cultura negra. Ou seja, tratava-se de reescrever a história africana, enfatizando não apenas o passado da escravização, mas sim os grandes reis e líderes das sociedades antigas.

Esta ação do Olodum pode parecer hoje trivial e ingênua, quando podemos, apenas consultando a wikipedia, obter várias informações sobre as civilizações antigas e, mais do que isto, questionar vários elementos que compuseram a imagem do Olodum a respeito do Egito dos faraós. Mas em 1987 não existia nem wikipedia, nem google, nem internet, nem legislação sobre o estudo de história da cultura africana nas escolas brasileiras. Buscar informações básicas sobre história e religião dos reinos antigos da África demandava um esforço considerável, do qual se encarregaram vários negros compositores do Pelourinho e do Olodum.

E o final da canção, com letra de Luciano Gomes, se encarregava de atualizar os motivos daquela celebração às divindades do Egito e do próprio movimento Olodum: a reivindicação por cidadania, o uso da música e da dança para unir a “comunidade do Pelourinho […] em laços de confraternidade”, para que “as cabeças” se encham “de liberdade”, e, assim, “o povo negro pede igualdade / deixando de lado as separações”.

Deuses, divindade infinita do universo.
Predominante esquema mitológico.
A ênfase do espírito original, Shu,
formará no Éden o Ovo Cósmico.

A emersão, nem Osíris sabe como aconteceu.
A emersão, nem Osíris sabe como aconteceu.
A ordem, ou submissão do olho seu,
transformou-se na verdadeira humanidade.

Epopéia do Código de Geb.
E Nut gerou as estrelas.
Osíris proclamou matrimônio com Ísis
e o mau Seth, irado, o assassinou, em Empera Há.

Hórus, levando avante a vingança do pai,
derrotando o império do mau Seth,
o grito da vitória é que nos satisfaz.

Cadê? Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton
Ei Gizé
Tutankâmon
Ei Gizé
Akhaenaton

Eu Falei Faraó
êeeee Faraó.
Eu clamo Olodum Pelourinho
êeeee Faraó.
Pirâmide a base do Egito
êeeee Faraó.
É eu clamo Olodum rebentão
êeeee Faraó
batendo na palma da mão.

Que mara-mara-mara
maravilha-ê
Egito, Egito ê.
Que mara-mara-mara
maravilha-ê
Egito, Egito ê.
Faraó-ó. Ó-ó-ó
Faraó-ó. Ó-ó-ó

Pelourinho, uma pequena comunidade
que porém o Olodum unira, em laços de confraternidade.
Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil:
em vez de cabelos trançados, veremos turbantes de Tutankâmon.

E as cabeças se enchem de liberdade.
O povo negro pede igualdade
deixando de lado as separações.

https://www.youtube.com/watch?v=5cSpCMwlNhk

Se, do ponto de vista estritamente melódico, as canções do Olodum pareciam quase primárias, a força de sua percussão e o impacto do ponto de vista de congregação das massas era impressionante.

O negro revela grandeza
seu mundo não reina a tristeza não
infinita beleza
o sétimo sentido da tal legião

Pelourinho é meu quadro negro
retrato da negra raiz
o canto singelo, divino
traz simbolizando essa negra razão

Quem sou eu?
Negro
Negra

Como o Ilê, o Olodum apreendia a reafricanização da música e do carnaval de Salvador como uma forma de um chamamento, um apelo para que os negros e negras efetivamente tomassem a cidade mais negra da Bahia e superassem todos os obstáculos sociais e políticos para a afirmação de sua dignidade cidadã.

Em “Salvador não inerte”, música de Bobôco e Beto Jamaica, esta prioridade era evidente: primeiro, afirmar a dignidade e “magnitude” do negro (“Olodum, negro elite / e negritude / deslumbrante / por ter magnitude”), e, em seguida, o chamamento para a rua, para o espaço público, para a cidade:

Integra no canto toda a massa
que vem para a praça se agitar
Salvador se mostrou mais alerta
com o Afro Olodum a cantar.

Nos anos 1990, a postura do Olodum, assim como dos demais blocos afro de Salvador, de reafirmar tradições africanas ao mesmo tempo em que se buscava aprofundar os intercâmbios com outras manifestações de cultura e música negras de diferentes lugares do Atlântico – das Américas, da Europa e da África – possibilitou ao bloco ser conhecido e reconhecido em todo o Brasil. A marca do Olodum passou a ser vista com frequência em aeroportos e suas camisas e abadás passaram a ser utilizadas por admiradores espalhados em todo o mundo.

Neste movimento, o Olodum se consolidou como anfitrião e referência dos movimentos culturais de afirmação da identidade negra no Brasil, perante músicos como Paul Simon e Michael Jackson (este último tinha, é verdade, um relação no mínimo ambígua com o tema da identidade negra, mas, entre os integrantes do Olodum, sempre foi visto como um representante da música dos negros espalhados pelo mundo).

Com o passar do tempo, por diversos motivos, os blocos afro perderam a centralidade na construção das referencias de identidade cultural e ação política dos negros de Salvador. A “força da grana que ergue e destrói coisas belas” encontrou meios de transformar em mercadoria e em consumo o movimento de reafricanização da música de carnaval soteropolitana. Não que os blocos tenham virado as costas para suas comunidades de origem. O Ilê Aiyê e o Olodum, e outros blocos afro, continuam a manter escolas formais, escolas de música, de dança, de teatro, de moda, para a população de seus bairros. E, mesmo com todas as transformações, ouvir ao vivo a batida do Olodum nas ladeiras do Pelourinho ainda é uma experiência fascinante. Mesmo para quem não gosta de balançar a banda para lá e para cá.

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  1. Silvia Cristina Arantes de Souza

    Texto maravilhoso! Mais uma vez aprendo muito sobre a Bahia através de suas incursões pela história e sua sensibilidade, musical e política! Parabéns!

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