Cultura, cotidiano e memória afetiva dos povos do sertão: Madrigal do IFBA canta Arrumação, de Elomar

por Rita Pereira

“O Sertão é do tamanho do mundo”, anunciou Guimarães Rosa, o poeta maior das veredas do grande sertão. O sertão é espaço de afirmação de identidades, mas é, também, fronteira e campo de valores híbridos. Nesse “sem lugar” ao qual se costuma designar “sertão” aflora um modo peculiar de cantar os amores, os deslocamentos, as crenças e os saberes, o tempo do trabalho, a vida cotidiana, as festas e outras formas de sociabilidade.

Dentre os que se dedicaram a cantar o sertão, destaca-se Elomar Figueira Mello, grande expoente da música brasileira contemporânea. Nascido na zona rural de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil, no ano de 1937, Elomar dedicou grande parte de sua vida a cantar e difundir as coisas do sertão. Em toda sua obra, afloram temas, ritmos e imagens próprios ao lugar onde ele nasceu e se criou, de onde partiu e para onde retorna sempre. Sua música, subordinada a uma lógica religiosa de interpretação do mundo, expressa as inquietudes e angústias de homens e mulheres que, em um tempo impreciso, habitam a “Patra do Sertão”

Na cantiga Arrumação, Elomar concede dignidade literária aos falares que ele nomeia como “linguagem dialetal sertaneza” para dar voz a um personagem típico do mundo que o poeta/compositor elegeu situar no centro do seu poemar. O homem convoca a família aos preparativos para a chegada da chuva, que se anuncia no ramiado do céu e no ronco do trovão. É preciso reduzir, chiqueirar os animais que se encontram dispersos do outro lado do rio. É urgente colher o alho e semear o feijão catador sobre o pó da terra. O imperativo da ação, que o personagem enuncia a cada vez que o refrão é repetido, passa, entretanto, a dividir o sentido do cantar com a narração e a reflexão sobre as mazelas que atingem as populações sertânicas e que levam do sertanejo o pouco que ele consegue juntar. É grande o temor de sussaranas que, à época da lua nova, ameaçam o gado miúdo. É preciso recordar como, na última lua, a gata prisunha arrebatou o pai do chiqueiro, causando grande trovejo e deixando rastro de sangue e grande prejuízo.

Por meio de Arrumação, Elomar mobiliza a memória afetiva daqueles que habitam a “Patra do sertão” e universaliza as experiências desses homens e mulheres por vezes ignorados por aqueles que se propõem a pensar a “cultura nacional”. Romper as barreiras do conhecimento em relação a esses outros, dar visibilidade às suas formas peculiares de pensamento e ação, são tarefas que foram abraçadas por Elomar no processo de produção de sua obra. Em Vitória da Conquista, essa determinação foi assumida, também, por um conjunto de canto coral, o Madrigal do IFBA (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia), que assegura, em seu repertório, a prevalência da música vocal brasileira, com destaque para a obra de Elomar. Sob a regência do maestro Marcos Ferreira, o Madrigal do IFBA apresenta, nessa gravação de Arrumação, em arranjo assinado por Lou Petrus, a experiência ímpar de cantar a sua própria aldeia, com o recurso à música já consagrada na voz e no violão do próprio compositor.

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  1. MARA REGINA DE MAGALHAES

    Parabéns Luiz Otávio, maravilhoso texto
    Belo coral e em especial a Rita e Guilherme

  2. Selma Matos

    Lindo!!! Tenho acompanhado as apresentações do Madrigal desde seu nascedouro e sempre fico muito emocionada!! Desta vez o impacto é ainda maior, pois sei que sua música rompeu inúmeras barreiras provocadas pelo isolamento social para nos trazer grande alegria, beleza e sensibilidade!! Muito obrigada Madrigal!! Parabéns IFBA!! Parabéns a seu regente e a todos os integrantes do coro!!

  3. Dirce Koga

    Simplesmente lindo! Toca fundo na gente, nestes tempos áridos de tanta luta, de tanto luta. Um refrigério para nossa alma … “cansada de guerra”. Obrigada Luís Otávio, Rita, Gabriel e tod@s que participam desse espaço/tempo de resistência!

    • Dirce Koga

      Desculpe … Guilherme ..

      • Luiz Otávio de Magalhães

        Rita: Obrigada, Dirce, por teu incentivo e tuas palavras de carinho. Não tem problema a troca do nome de Guilherme. É normal. Gabriel é um outro filho/sobrinho querido que, em breve, vai postar também uma contribuição no blog. Brinquei com ele que, agora que ele já recebeu até elogio, vai ter que nos enviar o texto. Rs.

  4. Silvia Cristina Arantes de Souza

    Maravilhoso! Rita, seu texto é muito tocante, além de nos ensinar sobre o sertão e sobre Elomar! E a apresentação do Madrigal é alimento pra nossa alma! Parabéns a todas e todos os envolvidos neste trabalho lindo, parabéns Maestro!

  5. Isa

    Que riqueza de vozes sertânicas cantando a poesia sertaneza de Elomar!
    Gratidão por essa arte que ilumina nossos dias!

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